Valor econômico, v.21, n.5017, 08/06/2020. Política, p. A8

 

Atos frustram aposta de radicalização

Marcelo Ribeiro 

08/06/2020

 

 

A expectativa de que as manifestações nas ruas contra o governo Jair Bolsonaro, pró-democracia e antirracismo, realizadas ontem, pudessem acirrar os ânimos da crise política não se confirmaram. Os atos, em várias capitais do país, correram de forma pacífica, sem registro de problemas entre grupos opositores, retirando o trunfo da radicalização, que tem sido uma aposta do presidente para mobilizar seus apoiadores. Em São Paulo, porém, um grupo que durante a tarde havia participado da manifestação, foi dispersado pela Polícia Militar durante a noite para evitar que seguisse para a avenida Paulista, onde ocorreria um ato a favor do presidente Bolsonaro.

Além dos atos de rua, houve panelaços e buzinaços contra o presidente promovidos em diversas localidades, num fim de semana em que o governo federal foi muito criticado, dentro e fora do país, por causa da retirada do número de mortos de covid-19 do site do Ministério da Saúde.No Rio, o ato em defesa da democracia e contra o racismo teve início a partir das 14h. Os manifestantes também lembraram a morte da vereadora Marielle Franco (Psol), em março de 2018. A manifestação foi acompanhada de perto pela Polícia Militar, mas não houve incidentes. Pela manhã, um ato em apoio a Bolsonaro foi realizado na Avenida Atlântica, na praia de Copacabana.

Em São Paulo, os manifestantes se concentraram a partir das 14h no Largo da Batata, na região Oeste da capital. O ato foi convocado por organizações de esquerda, como a Frente Povo Sem Medo, lideranças de torcidas organizadas e coletivos do movimento negro. Cartazes, bandeiras e cantos entoados na grande praça no bairro de Pinheiros tratavam de pautas diversas. Sobressaíram-se críticas à política do governo no combate à pandemia e ao número de mortes de negros causadas pela polícia.

O protesto promoveu aglomeração e frustrou a tentativa dos organizadores de manter o distanciamento de pelo menos um metro entre os manifestantes, para evitar a contaminação pela covid-19. Voluntários percorreram o local distribuindo álcool em gel e cartilhas com orientações de higiene. Por volta das 15h30, uma via inteira da avenida Brigadeiro Faria Lima estava tomada. Faixas pedindo "Fora, Bolsonaro" foram estendidas na rua.

Na avenida Paulista, manifestantes pró-Bolsonaro participaram de ato em frente ao prédio da Fiesp. Com faixas em defesa da intervenção militar, críticas ao governador João Doria e aplausos à PM, o ato reuniu cerca de cem pessoas. No domingo passado, a polícia lançou mão de bombas e prisões durante a manifestação na Paulista que reuniu manifestantes contra e a favor de Bolsonaro.

Em Brasília, manifestantes ocuparam a Esplanada dos Ministérios em dois atos simultâneos. Com cordão de isolamento organizado pela Polícia Militar, o local se dividiu entre manifestantes em defesa da democracia, antifascistas e antirracistas, e os bolsonaristas.

O ato em defesa da democracia e contrário ao racismo e fascismo começou por volta das 9h. A concentração ocorreu na Biblioteca Nacional e os manifestantes caminharam pela Esplanada em direção à Praça dos Três Poderes. O grupo seguiu até a Alameda das Bandeiras, onde os policiais militares fizeram um bloqueio para evitar um encontro e eventual enfrentamento com manifestantes favoráveis ao governo.

Os manifestantes pró-democracia gritaram palavras de ordem e seguravam faixas contra o fascismo, racismo e a favor do regime democrático, além da defesa do Sistema Único de Saúde (SUS). Vestidos de verde e amarelo, um grupo favorável ao governo se manifestou em frente ao Palácio do Planalto, como já ocorreu nos últimos domingos.

O ministro do Gabinete de Segurança Institucional (SGI), Augusto Heleno, acompanhou o trabalho das forças de segurança. Nas redes sociais, afirmou não ter ido à Esplanada para participar das manifestações favoráveis ao governo, mas para "agradecer aos integrantes das F Seg [forças de segurança], pelo trabalho abnegado e competente que realizam, em prol de manifestações pacíficas".

Em Belém (PA), a manifestação na manhã de ontem contra o racismo e a favor da democracia terminou com 112 pessoas detidas, dentre elas 16 menores de idade. A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará informou que agiu para fazer cumprir o decreto emitido pelo governador Helder Barbalho (MDB) que proíbe aglomerações com mais de dez pessoas como forma de deter a disseminação do novo coronavírus.

Ontem, Bolsonaro publicou em suas redes sociais um texto no qual afirma que as Forças Armadas foram responsáveis por derrotar "o nazismo e o fascismo" durante a Segunda Guerra Mundial. "Vinte e cinco mil brasileiros foram à 2ª Guerra e garantiram a nossa liberdade e democracia. Na Itália, para surpresa de outros exércitos, viram a nossa tropa composta de negros, brancos e mestiços vivendo de forma harmônica e integrada. A cobra fumou e derrotamos o nazismo e o fascismo", escreveu Bolsonaro. (Colaboraram Rodrigo Carro e Hugo Passarelli, do Rio e de São Paulo. Com agências noticiosas)

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'Impeachement seria solução mais barata e pactuada'

Malu Delgado

08/06/2020

 

 

É inconsolável o quadro político atual e futuro traçado pelo economista e cientista político Bruno Wanderley Reis, diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em entrevista ao Valor, o professor afirma que a “degradação dos marcos de convivência política no país é patente” e que o palco armado de disseminação de notícias falsas - o que ele classifica de “terraplanismo político” - acelera a corrosão do Brasil.

Estudioso atento das relações legislativas no país, Reis sustenta que é “fantasia adolescente” imaginar o fechamento do Congresso e marcha nas ruas para prender ministros do Supremo Tribunal Federal. “A fantasia do golpe, seja pela revolução, pelo golpe militar autoritário, seja qual for a coloração e o sabor político da aventura, é irrealista. Mas qual a leitura ingênua disso: ah, hoje a democracia é invulnerável, a ordem institucional é impessoal e burocrática, está aí para ficar e nunca mais vai acabar porque revoluções e golpes são impossíveis. Em termos”, alerta.

Para o cientista político, o sistema político e as relações institucionais se deterioram de maneira acelerada, sobretudo nos últimos cinco anos. A eleição de Jair Bolsonaro é a evidência mais explícita disso. O jogo político deixou de ter fair play desde 2014, sentencia, e chegamos a um cenário em que nenhum dos Poderes exerce a autocontenção. A única exceção, aponta, seria a Mesa Diretora da Câmara, com a postura equilibrada do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ).

“O mero fato de Bolsonaro sair do gueto, do esgoto da política, de ser o último dos deputados, o mais irrelevante de todos eles, para se tornar um protagonista e um candidato plausível da Presidência já é sintoma de fragilidade institucional, porque o Bolsonaro nunca fez outra coisa a não ser condenar as instituições vigentes. Quando Bolsonaro deixa de ser irrelevante, é porque as instituições estão frágeis.”

Reis não acredita que Bolsonaro terminará o mandato. “O Centrão acaba não sendo um lastro muito decisivo porque Rei Morto, Rei Posto”, diz, ao analisar a blindagem que o presidente tenta construir no Congresso. Com cautela, reconhece que as condições políticas para um impeachment ainda não estão dadas, mas não aposta numa saída pela cassação da chapa Bolsonaro-Mourão no Tribunal Superior Eleitoral. Para o establishment, advoga, será mais plausível e mais confortável fazer uma pactuação com as Forças Armadas deixando o vice, general Hamilton Mourão, seguir até 2022.

Confira, abaixo, os principais destaques da entrevista:

Risco de ruptura
Temos um presidente que conspira contra o controle institucional à luz do dia e todos os dias. Não só conspira, como exorta a conspiração, no meio da pandemia. Faz o que quer, insulta as instituições e elas têm dificuldade de enquadrá-lo. Tenho dificuldade em ver como plausível um cenário de ruptura, colapso. O golpe militar de 1964 sempre tentou se legitimar com um enquadramento institucional. Toda ordem institucional é vulnerável, como diziam os weberianos, a um ataque carismático. A recepção disso, no Brasil, é bem mais cínica, na medida em que os atores políticos têm muito mais espaço para sair interpretando, confrontando e eventualmente rasgando a ordem, aqui e acolá. Mas ela não entrará em colapso. Isso é fantasia. A queda da Bastilha não foi um colapso institucional para quem estava lá naquele dia. Passaram-se anos até cortarem a cabeça do rei.

Golpe militar
Eu vou invadir o Palácio do Planalto, controlar redes de televisão e estarei no Poder? Cercar o Congresso no meio da pandemia, trabalhando remotamente? Cercou o Congresso e daí? A fantasia do golpe, seja pela revolução, pelo golpe militar autoritário, seja qual for a coloração e o sabor político da aventura, é muito irrealista. Qual a leitura ingênua disso: ah, hoje a democracia é invulnerável, a ordem institucional é impessoal e burocrática, está aí para ficar e nunca mais vai acabar porque revoluções e golpes são impossíveis. Em termos. Estamos vivendo uma degradação e deterioração dos marcos de convivência política no país, para não falar no mundo, com a disseminação do que ingenuamente chamamos de “fake news” e que, na verdade, é uma espécie de terraplanismo político. O sistema está corroído.

Instituições
Instituições sempre funcionam. Uma vez que existem, moldam o ambiente. Ela não vai ser irrelevante. Cabe perguntar sobre a resiliência relativa, no tempo, o quanto ela amolda, cede ou constrange. Não existem métricas para isso. Nada opera em vazio completo. Está aí o Supremo botando limites ao presidente, o Congresso botando limites. É uma queda de braço incerta e esse fato mostra que, sim, as instituições produzem efeito. Por outro lado, na medida em que o efeito é incerto e as pessoas estão perplexas e inseguras, isso é sintoma de fragilidade institucional. Se a instituição é realmente sólida, o colapso institucional é impensável. A ruptura é impensável.

Fair play na política
O Executivo, flagrante e orgulhosamente, se recusa a exercer qualquer autocontenção. Ele julga que está lá para fazer o que der na telha. Qualquer contenção do Executivo, no Brasil de hoje, é inteiramente dependente de outros Poderes. É um governo que ostensivamente rejeita e se ofende com a mera possibilidade de contenção. Conspira abertamente contra a ordem constitucional. Bolsonaro, em 30 anos, nunca foi outra coisa. O mero fato de Bolsonaro sair do gueto, do esgoto da política, de ser o último dos deputados, o mais irrelevante de todos eles, para se tornar um protagonista e um candidato plausível é sintoma de fragilidade institucional. Quando Bolsonaro deixa de ser irrelevante, é porque as instituições estão frágeis. Uma dose de fair play é indispensável. É preciso que os caras se contenham. Se todo mundo joga bruto, deslealmente com todo mundo, não tem sistema político que fique em pé. Depende de certo fair play, de postura cavalheiresca naquela competição. Ou seja, eu vou jogar duro na eleição, mas eu vou até certo limite, porque eu não quero matar a galinha dos ovos de ouro. Políticos racionais não minam a credibilidade do sistema. Em boa medida, parte da nossa encrenca tem a ver com o fato de que, na última década, foi sumindo esse fair play.