O globo, n. 31678, 30/04/2020. Especial Coronavírus, p. 6

 

Após o ‘e daí?’

Daniel Gullino

Silvia Amorim

30/04/2020

 

 

Na política e na sociedade, críticas à fala de Bolsonaro

DIVULGAÇÃOCríticas. Governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio, Wilson Witzel: os dois rebateram as acusações do presidente Bolsonaro sobre mortes na pandemia

 Um dia após responder “e daí?” ao ser perguntado sobre o recorde de mortos pela Covid-19, que passam de 5 mil, o presidente Jair Bolsonaro acusou, ontem, os governadores de serem os responsáveis pelas mortes registradas, e não ele. Vários governadores rebateram as declarações e preparam uma nota em conjunto, no mais grave de uma série de embates travados com o presidente desde o início da pandemia. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), cobrou que Bolsonaro “saia da redoma de Brasília” e vá aos hospitais.

As reações à fala do presidente na noite de terça provocou reações também em outros setores da sociedade, como representantes de profissionais da área de saúde.

Para o presidente, como o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que governadores e prefeitos têm autonomia para decidirem sobre medidas restritivas no combate à doença, são eles que precisam explicar por que o número de vítimas continuou crescendo após essas decisões terem sido tomadas.

—Questão de mortes, a gente lamenta as mortes profundamente. Sabia que ia acontecer. Agora, quem tomou todas as medidas restritivas foram governadores e prefeitos — disse Bolsonaro.

—Essa conta tem que ser perguntada para os governadores. Perguntem ao senhor João Doria, ao senhor (Bruno) Covas, de por que terem tomado medidas tão restritivas e continua morrendo gente. Eles têm que responder. Vocês não vão colocar no meu colo essa conta.

Questionado se não tinha nenhuma responsabilidade sobre as mortes, o presidente respondeu:

— A pergunta é tão idiota que eu não vou responder.

DORIA PEDE RESPEITO

Após ser citado por Bolsonaro, o governador João Doria pediu ao presidente respeito aos mortos na pandemia e cobrou que ele visite as cidades mais atingidas pela Covid-19.

—Saia da redoma de Brasília. Se não quiser visitar São Paulo vá a Manaus, presidente. Vai ajudar o governador e o prefeito de lá, no mínimo, estando presente para ver a realidade do seu país e não a sua realidade do estande de tiro onde foi ontem celebrar enquanto choramos mortes de brasileiros. Saia da bolha, da fábula e do mundinho do ódio. Percorra hospitais e seja solidário com a realidade do seu país —criticou Doria.

Ao comentar o “e daí?” de Bolsonaro, o governador paulista citou medidas que o presidente poderia ter tomado para controlar a doença no país:

—Começando por respeitar os brasileiros que o elegeram e os que não votaram no senhor. Respeite o luto dessas famílias, os médicos, enfermeiros e profissionais de saúde que, ao contrário do senhor que vai treinar tiro, estão trabalhando para salvar vidas.

O governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), também criticou as declarações do presidente. Para Witzel, a fala de Bolsonaro na noite de terça feira é inaceitável. No Twitter, o governador escreveu: “É inaceitável o pouco caso com que o presidente sempre tratou a pandemia e as mortes. Ele não demonstra nenhuma solidariedade com as famílias que estão perdendo as pessoas que mais amam”.

Presidente do sindicato dos médicos de São Paulo, Éder Gatti repudiou o “e daí?” dito pelo presidente:

—É de se esperar uma postura mais séria do presidente da República. O governo precisa ajudar as pessoas mais pobres e quem está com a renda ameaçada. Há, sim, muita coisa a ser feita pelo governo — afirmou Gatti, à TV Globo.

O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), foi outro a criticar as declarações e disse que não quer “milagres”— em sua fala na terça à noite, sobre as mortes, Bolsonaro disse que “eu sou Messias (em referência ao próprio nome), mas não faço milagre”.

— Pedir a Bolsonaro para realmente governar é pedir um milagre ? Queremos apenas que ele pare de criar confusão política e de minimizar mortes e tragédias. Ou seja, queremos apenas que ele assuma os seus deveres diante de uma gravíssima pandemia nacional —cobrou Dino.

No Senado, líderes de partidos rivais, como Major Olímpio (PSL-SP) e Rogério Carvalho (PT-SE), se juntaram nas críticas. Disse Olímpio:

—O que cada brasileiro espera de fato de cada um de nós que tem a responsabilidade pública é que haja um comprometimento cada vez maior, um trabalho cada vez mais intenso para diminuir o número de mortes.

Carvalho chamou o presidente à responsabilidade.

—O presidente estimulou contato social, não atendeu as orientações da OMS , e a situação ficará mais grave.

A ex-presidenciável e exministra Marina Silva (Rede) viu “falta de caráter” nas declarações de Bolsonaro:

— Quando o presidente diz “e daí?” para mais de 5 mil mortos, ao som de risadas de deboche de seus apoiadores, ou é um atestado por notória evidência de insanidade, ou é uma prova candente de falta de caráter e qualquer vestígio de sensibilidade —avaliou.