Correio braziliense, n. 20827 , 31/05/2020. Brasil, p.6

 

A rota desenfreada da covid pelo interior

Bruna Lima

Maria Eduarda Cardim

31/05/2020

 

 

CORONAVÍRUS » Tragédia anunciada por especialistas, a doença alastra-se rapidamente pelos pequenos municípios, despreparados para lidar com a pandemia. A interiorização do vírus é impactante: em dois meses, o número de municípios com infectados no país cresceu 1.225%

Sem ser visto, o vírus mais comentado da atualidade se alastra pelos quatro cantos do Brasil. Considerado o epicentro da covid-19 na América Latina pela Organização Mundial da Saúde, o segundo país com maior número de casos tem dimensões continentais e não consegue concentrar a doença nas grandes metrópoles. Descontrolada, a pandemia avança para municípios pequenos e despreparados para lidar com sua complexidade. A tendência de interiorização do vírus no Brasil, vista como uma “realidade” pelo Ministério da Saúde, pode ser percebida pelo aumento de municípios que registraram casos no país. Em dois meses, esse número cresceu 1.225%.

Em 28 de março, apenas 297 cidades haviam confirmado casos da covid-19. Dois meses depois, mais 3.639 municípios registraram infectados. Com isso, até a última quinta-feira, 3.936 cidades brasileiras identificaram, pelo menos, um diagnóstico positivo de covid-19, sendo que a maioria desses municípios, 2.855, tem de dois a 100 infectados. Os dados são do Ministério da Saúde.

O secretário substituto de Vigilância em Saúde, Eduardo Macário, afirma que “a interiorização é uma realidade no Brasil, mas ela não é igual em todo o país. Há casos que foram identificados em alguns municípios em bem menor proporção e que rapidamente foram identificados. Isso é fundamental para evitar que ocorram surtos nessas localidades”, explica.

Na avaliação do professor do departamento de epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), Eliseu Alves Waldman, a interiorização é uma tendência das doenças respiratórias. “É a trajetória normal do aumento de outras doenças respiratórias. A influenza, por exemplo, acomete boa parte da população das cidades maiores até os menores municípios em intensidade diferente”, destaca. Ele explica que a doença atingirá os municípios que ficam mais próximos das áreas metropolitanas e aqueles que têm atividade econômica mais intensa e intercâmbio com os grandes centros.

“As cidades do interior têm atividade econômica e têm contato com a cidade polo. A doença caminha onde trilha o homem”. O epidemiologista e professor do departamento de saúde coletiva da Universidade de Brasília (UnB), Jonas Brant, acredita que a covid busca municípios de acordo com a sua atividade econômica e relações interpessoais. “Não está relacionado, necessariamente, a distância em quilômetros das grandes cidades. Esses municípios vão recebendo sequenciamento devido à relação econômica com os grandes polos”, ressalta.

Há um mês, estudos indicavam a interiorização do novo coronavírus no país. Dois estudos da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) deram base para um alerta feito pelo governo estadual de São Paulo, em 28 de abril, sobre o assunto. O estudo coordenado pelo professor Carlos Magno Fortaleza conclui que já havia uma difusão evidente da pandemia para o interior. “Até a presente data, dois terços dos casos confirmados da covid-19 no estado de São Paulo ocorreram na capital. Isso criou uma sensação de segurança nas cidades do interior, com autoridades locais questionando as medidas de distanciamento social”, diz um trecho do estudo. Na data, das 645 cidades do estado, 305 já tinham identificado, pelo menos, um caso da doença. O número cresceu e até essa sexta-feira, 522 municípios registraram casos, ou seja, 80,9% de todas as cidades de São Paulo já identificaram infectados.

Macário analisa a caminhada do vírus rumo ao interior do estado paulista. “Quando observamos a região metropolitana de São Paulo, percebemos que o aumento não acontece de forma tão pronunciada como no restante do estado. Então, embora nós entendamos que essa região tenha um grande número de casos notificados, temos observado cada vez mais uma interiorização da doença. Vendo novas cidades litorâneas e cidades do interior diagnosticando casos”, afirmou o secretário, em coletiva de imprensa, na última terça-feira. Apesar da preocupação, o secretário acredita que a resposta dos gestores municipais está sendo “adequada”.

 Contenção

Os especialistas, no entanto, veem a situação com preocupação. Para Brant, se as medidas de saúde pública tivessem sido adotadas antes, a rápida interiorização seria evitável. “Não falo só do isolamento social, mas de medidas de apoio social, como auxílios emergenciais, que garantem que a população mais vulnerável possa ficar em casa. O Brasil não consegue implementar essas medidas na velocidade necessária. Quando consegue implementar, já é tarde”, avalia.

O secretário da pasta de Saúde explica que as características da doença tornam ainda mais difícil uma suspensão da transmissão. “O fato de ter um grande percentual de pessoas que não vai desenvolver sintomas ou desenvolver sintomas muito leves torna muito difícil a realização de ações visando a interrupção da transmissão”, pontua. Para o professor Waldman, um dos principais obstáculos para barrar o avanço da covid-19 é a falta de um consenso nacional em relação às medidas de combate à doença.

 “Acho que se a gente tivesse alcançado um consenso já no início do processo, evidentemente as coisas seriam menos complexas. Para você conseguir o amplo apoio de uma sociedade tão heterogênea como a do Brasil, todas as lideranças têm que falar uma única linguagem”, destaca. Sem uma concordância, as dificuldades serão crescentes, de acordo com o especialista. “Enquanto a gente não tiver isso, nós enfrentaremos dificuldades que são crescentes porque esses pequenos municípios não têm unidades de terapia intensiva (UTIs), então vão ter que encaminhar pacientes para cidades maiores. E algumas já estão com seus recursos em nível crítico”, indica Waldman.

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Gargalos são motivo de alerta 

Bruna Lima

Maria Eduarda Cardim

31/05/2020

 

 

O despreparo das unidades de saúde fora das grandes metrópoles para atender a uma pandemia de grandes complexidades assusta. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) exemplifica, em estudo centrado na avaliação da situação do Rio de Janeiro, que a falta de equipamentos de proteção individual (EPIs) para tratamento da doença é mais um problema que atinge os municípios do interior no avanço de transmissibilidade da doença. A análise aponta que a distribuição dos recursos de saúde utilizados no tratamento dos infectados no estado é desigual.

“Uma das principais conclusões é que a região compreendida pela capital e por municípios da Baixada Fluminense concentra, pelo menos, 45% de todos os recursos de saúde estaduais, chegando a responder por mais de 70% dos médicos e enfermeiros intensivistas trabalhando no SUS, marcadamente no município do Rio de Janeiro”, afirma o estudo.

No entanto, a estratégia para garantir atendimento sugerida pela Fiocruz gira em torno, principalmente, da capacidade de interlocução e organização em enviar pacientes para os grandes centros no tempo mais curto possível.

“É evidente que nem todos os municípios do país devem ter um centro de tratamento intensivo, mas é necessário definir serviços de referência e contra referência no atendimento à saúde, evitando vazios de atendimento, bem como deslocamentos longos, que podem afetar o estado de saúde do indivíduo”, alertam pesquisadores na última nota técnica do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict) da Fiocruz, centrada em abordar a velocidade em que o vírus se interioriza.

Estrutura nas capitais

A avaliação é de que em apenas uma semana (de 9 a 16 de maio), nos municípios com população entre 20 e 50 mil habitantes, a cada dia, seis cidades registraram pela primeira vez uma morte pela doença. Entre municípios menores, com população de 10 a 20 mil habitantes, a inclusão foi de cinco cidades a cada dia.

Segundo o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, esse processo é inevitável e está apenas no início. “Vamos precisar de ter as estruturas preparadas nas capitais e regiões metropolitanas para receber esse pessoal do interior, que não tem essa estrutura lá”, ressaltou, durante videoconferência com pesquisadores da Fiocruz nesta semana.

Pazuello indica, inclusive, que as cidades responsáveis pelo atendimento de infectados pelo novo coronavírus terão prioridade no repasse dos R$ 9 bilhões provenientes do Fundo de Reservas Monetárias. A proposta, feita por prefeitos durante a última reunião com dirigentes da Frente Nacional de Prefeitos (FNP), era fazer a distribuição da verba de acordo com os atendimentos de Alta e Média Complexidade (MAC), em conformidade com os tetos estabelecidos.

“Se a pessoa ficou doente no município pequeno, ela vai ser levada para o tratamento na cidade de maior porte, com estrutura, e que seja mais próxima”, argumentou o presidente da FNP e prefeito de Campinas, Jonas Donizette. Além disso, outra condicionante sugerida foi o repasse para os estados proporcional ao número de infectados.