Correio braziliense, n. 20827 , 31/05/2020. Artigos, p.13

 

A invisibilidade feminina na quarentena

Ilana Tombaka

31/05/2020

 

 

A pandemia do coronavírus mexeu com nossa rotina. Mudou o dia a dia de todos: mulheres e homens; adultos, crianças e idosos. Grande parte de nossa forma de comunicar foi movimentada para o mundo virtual e uma imensidade de lives, seminários, cursos e aulas on-line foi disponibilizada para atenuar este momento difícil e nos propiciar aprendizado no período que estamos obrigados a ficar em casa. Talvez o novo normal nos poupe o tempo do trânsito, das filas de aeroportos e, do local onde estamos, tenhamos acesso a conteúdos interessantes e oportunidades imperdíveis de atualização e reflexão.

Sedenta por aproveitar a oportunidade e fazer do limão limonada, passei a prestar atenção no que o meu feed me ofertava. No início, fiquei surpresa, depois aborrecida, cansada e, por fim, inconformada. Por que são tantas oportunidades de aprendizado em que apenas os homens falam? Por que só um grupo pode ensinar? Por que só o ponto de vista masculino é convidado a contribuir e partilhar?

Preocupa-me que, após a pandemia, nós, mulheres, voltemos mais opacas, transparentes, quase invisíveis. Que o novo normal leve em conta a visão de apenas um grupo, fazendo que tenhamos retrocessos no espaço para diversidade conquistada com enorme esforço. Eu acreditava que nossa sociedade já tinha transposto essa parte do caminho e entendido que a pluralidade só se efetiva quando todos são ouvidos, ou, mais do que isso, quando vários têm o espaço da fala.

Durante duas semanas, coletei posts de eventos em que a equidade foi relegada a segundo plano. Quando instados a explicar o motivo da falta de espaço para as mulheres, os organizadores justificam com respostas tão inaceitáveis quanto fantasiosas. Apresentam desculpas dizendo que é área eminentemente masculina. E, quando essa desculpa não cola, que convidaram mulheres e elas não aceitaram. E jogam a responsabilidade para o nosso colo: “As mulheres não querem participar”, ou, “É mais confortável se resguardar e não expor opiniões neste momento”.

Chamou a atenção, também, a variedade de organizações que divulgam oportunidades de reflexão sem a devida preocupação com equidade e, ainda, fazem propaganda dos eventos, como se contar com uma mesa apenas de homens fosse normal e aceitável. São de áreas tão distintas quanto relações institucionais, direito administrativo e saúde, perfis que vão de setores tradicionais até os que discutem inovação, mesas compostas de senhores e jovens players do mercado.

Muito me surpreendeu ver que representantes das novas gerações, conhecidas por valorizar o propósito nas escolhas, não coloquem no escopo do que deve ser observado a equidade de gênero. Surpresa maior e tristeza geral: foram eventos promovidos por universidades públicas e privadas, de ótimo nível, com corpo docente composto por talentosas professoras, que optaram por as excluir dos debates. Não é, portanto, problema de segmento ou geracional, mas triste realidade de toda a sociedade.

Não é novidade que a quarentena trouxe ônus adicionais para o público feminino. Os casos de violência contra a mulher dispararam, e o acúmulo de atividades domésticas aumentou. Agora, também é necessário acompanhar os filhos nas novas metodologias de ensino a distância e adequar as rotinas de manutenção de limpeza e organização do lar. Em geral, essas tarefas ficam a cargo da mulher. Mas não pensei que a invisibilidade fosse vírus que, tal qual o corona, circula fartamente e nos debilita. Só que nunca é assintomático. Leva também à morte, traz a ausência de vozes, cores e matizes de opinião. Oculta a pluralidade e faz com que pensemos apenas a partir de um prisma de visão.

Equidade, pluralidade e diversidade são conceitos fartamente expostos nas cartas de valores das organizações, com uma obrigatoriedade uniforme que, agora, se mostra apenas formal. Infelizmente, só uma minoria consegue realmente entendê-los, e um número, ainda menor, exercitá-lo. Fiquemos alertas para não deixar que tirem o brilho das mulheres. É hora de sair do silêncio e abrir espaço para que escutem a nossa voz, ainda que nem sempre formalmente convidadas a participar.

» ILANA TOMBAKA

Diretora-geral do Senado Federal