Valor econômico, v.21, n.5011, 29/05/2020. Política, p. A8

 

Governo reage a STF e Bolsonaro diz que pode ignorar ordens

Murillo Camarotto

Matheus Schuch

Isadora Peron

29/05/2020

 

 

Poucas horas após ser atingido pela operação policial que investiga a proliferação de notícias falsas na internet e ameaças a autoridades, o governo subiu o tom e reagiu com ações concretas e retóricas às últimas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Ontem, o presidente Jair Bolsonaro disse logo pela manhã que "ordens absurdas" não serão mais cumpridas e que "temos que botar limites". As declarações provocaram reações imediatas no Judiciário e no Legislativo, onde aumentaram as preocupações com a possibilidade de se instalar uma crise institucional de grandes proporções.

"Não teremos outro dia como ontem [anteontem], chega!", disse o presidente na saída do Palácio do Alvorada. "Querem tirar a mídia que eu tenho a meu favor sob o argumento mentiroso de 'fake news'", acrescentou, referindo-se à operação que investiga financiadores e responsáveis pela disseminação de notícias falsas na internet, entre eles aliados de Bolsonaro. Mais adiante, o presidente afirmou ter em mãos as "armas da democracia".

À noite, em transmissão ao vivo nas redes sociais, ele voltou ao assunto e destacou que o inquérito no STF contra as "fake news" não tem base legal e é inconstitucional. "Ontem [quarta-feira] foi um dia triste para os que lutam para que o país continue democrático", destacou.

A reação começou ainda na noite de quarta-feira. Após se reunir com o presidente, o ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, entrou com um habeas corpus no STF requerendo a suspensão do depoimento do ministro da Educação, Abraham Weintraub, determinado na véspera pelo Supremo.

No documento, Mendonça também pede que Weintraub seja excluído do inquérito que investiga "fake news", sob o argumento de que as declarações ofensivas feitas por ele durante a reunião ministerial do dia 22 de abril não guardam relação com a investigação. Na ocasião, Weintraub chamou os ministros do Supremo de "vagabundos" e que, por ele, os prenderia.

O ministro da Justiça enumerou algumas decisões do Supremo que, na visão do Palácio do Planalto, estariam ensejando "quebra da independência, harmonia e respeito entre os Poderes". Entre esses fatos estão as convocações dos ministros Augusto Heleno (GSI), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral) e Walter Braga Netto (Casa Civil) para prestarem depoimento ao STF. Mendonça também menciona a divulgação "desproporcional" do vídeo da reunião ministerial realizada em 22 de abril e a operação da Polícia Federal (PF) contra 29 aliados de Bolsonaro.

A lista de fatos citados pelo ministro da Justiça conta ainda com a convocação de Weintraub e o pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, para que o inquérito seja suspenso até que o plenário do STF defina os limites das investigações.

Mendonça argumenta que Weintraub apenas fez uso de sua liberdade de expressão, "ainda que em tom crítico". "Qualquer confusão que se trace entre a disseminação de notícias falsas, ou 'fake news', com o pleno exercício do direito de opinião e liberdade de expressão pode resvalar em censura inconstitucional", argumentou André Mendonça.

Para o ministro da Justiça, trata-se de uma declaração no pleno exercício da liberdade de expressão sobre pessoas públicas em um ambiente privado e não a disseminação indiscriminada de notícias falsas. "A prova determinada, portanto, seria impertinente e irrelevante", sustenta ele.

O pedido menciona ainda que, na condição de acusado do cometimento de crime, Weintraub deveria ter preservado os seus direitos ao silêncio e o de não produzir provas contra si, o que está previsto na legislação penal. "Assim, merece o tratamento assegurado a todo investigado, notadamente o direito a ser ouvido após a realização de todos os atos de instrução", afirma a peça.

O habeas corpus ficou sob a relatoria do ministro Edson Fachin. Ontem, ele encaminhou o pedido do governo para análise do ministro Alexandre de Moraes e também da PGR, com o prazo de até 24 horas para resposta.

Além do HC, o governo decidiu ontem revogar uma portaria assinada em março pelos então ministros Sergio Moro (Justiça) e Luiz Henrique Mandetta (Saúde). O documento tratava das medidas que deveriam ser adotadas para o combate à pandemia do novo coronavírus e previa, inclusive, punição para aqueles que não respeitassem as normas.

Mendonça - que deixou a AGU para substituir Moro - também foi o responsável pelo anúncio da revogação. De acordo com ele, os novos ministros das pastas ressaltam que "deve ser assegurado o pleno direito à dignidade, direitos humanos e liberdades fundamentais, mesmo em medidas adotadas na pandemia".

"A revogação, e a reafirmação do pleno direito à dignidade, direitos humanos e liberdades fundamentais, levam em conta a decisão do Supremo Tribunal Federal que possibilitou a adoção de medidas por Estados e municípios mesmo em contrariedade a regras estabelecidas pela União", diz o comunicado.

"Além disso, a medida também leva em conta as notícias de prisões possivelmente abusivas de cidadãos, as quais não podem ser objeto de anuência por parte das autoridades federais", complementa o documento.

A reação demonstrada por Bolsonaro sugeriu que o presidente poderia tomar mais medidas contrárias às ordens do Supremo, como uma nova tentativa de nomear o delegado Alexandre Ramagem para a direção-geral da Polícia Federal, por exemplo. Segundo o Valor apurou, no entanto, esse assunto ainda não foi tratado pelo presidente com os seus principais auxiliares.

Outra iniciativa vista com preocupação foi a carta publicada na semana passada pelo ministro do GSI. No documento, Augusto Heleno disse que uma eventual apreensão do celular do presidente da República teria consequências imprevisíveis na estabilidade institucional do país.

Ontem, no entanto, o general baixou o tom. Segundo ele, tratou-se de uma nota "genérica", que não tinha como destinatário o ministro Celso de Mello, do STF, relator do inquérito sobre a suposta tentativa de interferência de Bolsonaro na Polícia Federal.

"Não citei o nome do ministro Celso de Mello, não citei o nome do procurador-geral. Fiz uma nota simplesmente genérica", afirmou. (Com agências noticiosas)

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Judiciário atua para evitar agravamento da crise

Isadora Peron

Murillo Camarotto

André Guilherme Vieira

29/05/2020

 

 

Novos desdobramentos do inquérito das "fake news", o mais recente epicentro do embate entre o governo Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal (STF), geraram ontem preocupações na cúpula do Poder Judiciário com a possibilidade de a crise se agravar. Após o procurador-geral da República, Augusto Aras, pedir a suspensão da investigação, o ministro Edson Fachin cobrou que o presidente da Corte, Dias Toffoli, dê prioridade para que o caso seja analisado pelo plenário. O resultado do julgamento, que ainda não tem data para ocorrer, representará a posição institucional da Corte sobre o caso.

Em seu despacho, Fachin lembrou que liberou para a pauta a ação apresentada pelo Rede Sustentabilidade, que questiona a abertura do inquérito, há mais de um ano, em maio de 2019, e que, em agosto, voltou a pedir urgência para que o caso fosse discutido por todos os ministros.

Em março do ano passado, quando Toffoli decidiu instaurar o inquérito para investigar ataques e ofensas a ministros, a iniciativa foi bastante criticada e dividiu a Corte. A principal crítica se deu porque a investigação foi aberta "de ofício", isto é, sem um pedido formal de autoridades policiais ou do Ministério Público, como é a praxe. Outro problema foi que o ministro Alexandre de Moraes foi escolhido relator sem que houvesse sorteio entre os demais magistrados, que é o procedimento padrão.

Por conta das críticas, o presidente do STF nunca levou os questionamentos em relação à abertura do inquérito a plenário, com medo de sair derrotado. Hoje, no entanto, após os sucessivos ataques aos ministros do STF e a ofensiva do governo, a avaliação de interlocutores de Toffoli é que a discussão no plenário daria mais legitimidade à investigação, que "se tornou importante demais para Corte".

O pedido de Aras para suspender o inquérito das "fake news" aconteceu após Moraes autorizar a deflagração de operação que atingiu aliados do presidente Jair Bolsonaro.

A posição representou uma mudança na postura de Aras, que vinha apoiando a continuidade da investigação, desde que contasse com a participação do Ministério Público. O PGR chegou a ser consultado por Moraes, mas se manifestou contra a deflagração da operação.

Após o pedido de Aras, o Rede pediu para que o procurador-geral fosse convocado para manifestar sua opinião definitiva sobre o inquérito, sob o argumento de que ele deu "um giro de opinião" após as investigações terem chegado ao entorno de Bolsonaro.

"Tal postura imprópria parece indicar que o ilustre chefe da PGR se sensibiliza quanto à sorte de investigativos aliados do Sr. Presidente da República, que o conduzira ao cargo e já sinaliza sua intenção de nomeá-lo para novo mandato ou mesmo para tomar assento nesta Suprema Corte", diz o documento.

Em nota divulgada ontem, Aras negou que tenha mudado de opinião sobre o inquérito, mas afirmou que as investigações têm extrapolado os limites apontados pelo Ministério Público como aceitáveis.

Ele afirmou que sua concordância inicial em relação ao inquérito se deu em "homenagem à prerrogativa de qualquer órgão, no particular os Tribunais, de realizar investigações preliminares quanto a fatos que atentem contra a segurança e a vida pessoal de seus integrantes".

Para o PGR, o plenário precisa estabelecer os "contornos e os limites desse atípico inquérito e esclarecer como será a participação do Ministério Público".

Ontem, os ministros do STF evitaram se manifestar publicamente sobre a crise com o Palácio do Planalto. Esta semana, no entanto, houve desagravos ao decano Celso de Mello, ministro mais antigo da Corte, que é considerado uma referência na instituição. Celso também vem sendo atacado pelo presidente e seus auxiliares, por ser o relator do inquérito que investiga a suposta interferência na Polícia Federal.

As críticas ao ministro aumentaram depois que o decano decidiu liberar, praticamente na íntegra, o vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril, considerada peça-chave do inquérito para corroborar as denúncias do ex-ministro Sergio Moro.

O ministro Marco Aurélio Mello, no entanto, fez um apelo pelo entendimento e o diálogo. "As instituições pressupõem entendimento. Ante crise avassaladora, na saúde e na economia, os esforços devem ser conjuntos. É hora de somar forças. Vaidades e paixões devem ser minimizadas. A sociedade reclama segurança jurídica-institucional", disse o ministro ao Valor.

Segundo ele, os Três Poderes "não devem digladiar, mas atuar, com respeito mútuo, presentes independência e harmonia". "Somos responsáveis por dias melhores. A história é cobradora. A história é impiedosa. Que todos reflitam antes da prática de qualquer ato, atuando com fidelidade, com pureza d'alma."

Apesar do tensionamento, ministros de cortes superiores ouvidos reservadamente não acreditam que as Forças Armadas embarcariam em uma "aventura golpista". Para um deles, é preciso ter claro que o Exército de 2020 não é o mesmo de 1964. Ele afirma que a tradição militar de respeito e hierarquia não pode ser interpretada como "fé cega" no presidente. Eventuais atos em desacordo com a Constituição não encontrarão respaldo, nem serão garantidos pelos comandantes das Forças Armadas.

Para outro magistrado, não há razão para acreditar que os militares entrariam em uma "canoa furada". Ele destaca que o Brasil tem sérios problemas de credibilidade no cenário externo e que qualquer ação de natureza excepcional agravaria ainda mais essa situação.

Para esse ministro, a elite militar tem excelente formação, discernimento e não tentaria sustentar, por meio de um golpe, de Estado, um governo "que não demonstra a menor perspectiva de achar um rumo".

Citando as mudanças feitas no Ministério da Justiça e na PF, outro ministro de um tribunal superior disse que o presidente já demonstrou disposição de retirar os obstáculos que impedem sua atuação. No caso do Judiciário, avaliou, um instrumento que poderia ser utilizado pelo governo é a lei contra abuso de autoridades. Outra possibilidade seria uma penalização via Senado.

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Alcolumbre assume o papel de 'apaziguador'

Renan Truffi

Vandson Lima

Marcelo Ribeiro

Matheus Schuch

29/05/2020

 

 

Pressionado pelo parlamento a dar uma resposta ao presidente Jair Bolsonaro contra as ameaças às instituições, mas ao mesmo tempo preocupado com uma possível ruptura institucional, o Presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) assumiu o papel de bombeiro na crise entre os Poderes deflagrada anteontem pela operação da Polícia Federal, determinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que teve como alvos aliados do presidente.

Alcolumbre tomou a iniciativa de ir ao Palácio do Planalto na tarde de ontem. Relatou ao presidente que falas como a dele pela manhã (“Acabou, porra! Não teremos outro dia como ontem”) são infelizes e geram tensão não só no Judiciário, mas também no Legislativo. Ele lembrou a Bolsonaro que, como presidente do Congresso, não pode assumir um lado na disputa.

Bolsonaro repetiu várias vezes que precisava “ser respeitado”. Disse que respeita as instituições, caso contrário não teria entregue a gravação da reunião de 22 de abril. Mas não aceitava, por exemplo, quererem vasculhar seu celular - algo, na verdade, advindo de um pedido da oposição, que o ministro Celso de Mello apenas repassou à Procuradoria-Geral da República.

Alcolumbre pediu a Bolsonaro que “não estique a corda”. Que o Congresso está pronto para ajudar o governo e votar as medidas necessárias para a superação da crise, mas aconselhou Bolsonaro a evitar as já frequentes saídas no fim de semana para insuflar manifestações de viés antidemocrático - não é a primeira vez que o Presidente do Senado faz esse pedido a Bolsonaro.

O clima é tenso principalmente na cúpula do Senado e da Câmara dos Deputados. Durante todo o dia, houve pressão vinda principalmente das bancadas por uma resposta do Congresso como instituição.

No Senado, por exemplo, a avaliação é que as instituições democráticas estão “perdendo o controle da situação” e que o governo “perdeu o medo” dos órgãos de controle. “Davi [Alcolumbre] e [Rodrigo] Maia precisam sair da toca”, disse um parlamentar, em condição de anonimato.

Alguns congressistas sugeriam uma resposta mais explícita, com paralisação das votações por uma semana e colocar na agenda como emergencial a defesa da democracia. Outro grupo levantou a hipótese de o Congresso eleger um interlocutor para conversar com os militares.

Este nome não poderia ser nem do Centrão, que se aproximou do presidente, nem dos partidos de esquerda, que não têm boas reações com os generais. A aposta desses congressistas é que as Forças Armadas não vão embarcar nesse movimento do presidente da República.

De forma geral, apesar da inconstitucionalidade do inquérito conduzido pelo Supremo, é quase unânime no Senado o apoio à operação contra o “gabinete do ódio”, que seria responsável por comandar a disseminação de notícias falsas. Há consenso de que a aprovação do projeto, de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que trata de regular e punir a disseminação das chamadas “fake news”, não é uma resposta à altura. “Isso [projeto do Alessandro Vieira] é um [revólver] 38 contra uma bazuca”, disse uma fonte.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), pontuou que as declarações do presidente Bolsonaro “vão no caminho contrário do que a gente começou a construir, todos os Poderes juntos, desde a semana passada”.

“Toda a tentativa que fizemos essa semana é reafirmando nosso compromisso com o diálogo e a importância do respeito institucional. Acho que as declarações de hoje vão em outro caminho, um caminho que gera insegurança”, disse.

Evitando um posicionamento mais duro em relação a Bolsonaro, Maia pontuou que um compartilhamento de informações da PF com a Comissão Mista Parlamentar de Inquérito (CPI) das “fake news” é possível, desde que feito na mais absoluta legalidade e respeitando as posições dos órgãos envolvidos.