Valor econômico, v.21, n.5011, 29/05/2020. Artigos, p. A12

 

Covid-19 e seus efeitos colaterais na inflação

Fábio Romão

29/05/2020

 

 

Inflação deste ano e de 2021 não será obstáculo a medidas adicionais de estímulo à demanda

No último dia 8 de maio, o IPCA/IBGE apontou deflação no varejo em abril. Esta queda de preços tem muito a ver com a pandemia, e novas deflações estão por vir neste 2º trimestre.

Primeiramente, vamos olhar quem ainda está pressionado: a corrida aos supermercados (na esteira de alguma estocagem por parte das famílias) intensificou aumentos em vários alimentos, sobretudo em itens mais essenciais (como feijão, arroz e itens in natura) e na alimentação fora do lar ligada ao delivery. Contudo, informações recentes vindas do atacado (agropecuário e industrial) sinalizam que a alimentação poderá amainar suas altas daqui para a frente.

Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que a estimativa mais recente (de abril de 2020) para a safra de grãos em 2020 aponta para um recorde: o IBGE estima que a nova safra superará a de 2019 em +2,3%. Além disso, é nítido que as medidas de distanciamento social instituídas para combater a pandemia têm criado mais dificuldades para as atividades comerciais e de serviços do que para o campo e algumas indústrias, entre as quais a de alimentos. Assim, eventuais gargalos de oferta de alimentos, ainda que possam vir a aparecer, não deverão, avalio, ser intensos e/ou duradouros. Ademais, à medida em que as ações de restrição de circulação forem sendo relaxadas a estocagem de alimentos por parte das famílias deverá diminuir.

Ainda cabe citar que, a despeito da demanda por alimentos não cair de maneira relevante, é bem provável que venhamos a observar dois fatores que poderão conter seus preços: mudanças no mix de consumo (como a troca da carne bovina pela de frango); e redução das exportações (ligada à pandemia), o que aumenta a oferta doméstica e rebaixa preços.

Também é importante citar o gritante descompasso entre a evolução dos preços industriais no atacado e no varejo observado desde 2018. A importante desvalorização cambial daquele ano - que acabou pegando em cheio os preços industriais ao produtor (com alta de 9,2%, IGP-DI/FGV) - pouco afetou os bens industriais do IPCA (que tiveram alta de apenas 1,1%). Desde então, esse repasse tem sido deveras modesto, diferencial que poderá se alargar por conta da pandemia. Ou seja, a grande ociosidade industrial gerada pelos anos de atividade econômica enfraquecida - e que agora é ampliada devido ao impacto negativo da covid-19 sobre a demanda - tem desempenhado o papel de uma vacina (de eficácia evidentemente transitória) contra os clássicos impactos adversos sobre a inflação que uma alta expressiva do câmbio costuma ter.

Um dos setores mais afetados pela pandemia é o de serviços. Diante da forte queda das vendas do setor, a categoria Serviços do IPCA - que já em 2018 e 2019 mostrou taxas de elevação nos arredores de 3,5%, bem baixas em comparação à taxa média observada entre 2011 e 2015 (8,5%) - poderá registrar taxa inferior a 2% em 2020. Muitos dos componentes da categoria, como passagem aérea, aluguel, empregado doméstico, cabeleireiro, deverão ter alta muito limitada ou mesmo recuo de preços neste ano.

O desemprego médio projetado pela LCA para 2020, de 14,4% da força de trabalho - bem acima da média de 2019 (de 11,9%) e, sobretudo, do primeiro ano da Pnad Contínua/IBGE, o de 2012 (7,3%) -, reforça sobremaneira esta expectativa de modesta elevação dos preços de Serviços neste ano.

Outro ponto é a evolução das commodities energéticas, sobretudo a cotação do petróleo. O brent ao final de abril chegou a sua cotação mínima em mais de 20 anos. Desde então tem mostrado recomposição marginal (pois parte do mundo começou a flexibilizar as restrições de circulação, o que tende a aumentar a demanda por combustíveis). Em conjunto com a alta do dólar, essa alta do petróleo já levou a Petrobras a promover aumentos no preço da gasolina (em 07, 14, 21 e 27/05) e um aumento no preço do diesel (em 19 e 27/05).

Contudo, a perspectiva é de que a recuperação da atividade econômica global seja lenta. Não se antevê uma elevação de demanda capaz de sustentar um aumento mais significativo e sustentado do preço internacional do petróleo. Diante da debilidade da atividade econômica no Brasil e das restrições à circulação ainda presentes, os preços dos derivados de petróleo e dos biocombustíveis estão e deverão seguir em patamar baixo. Entre março (início das restrições) e abril, segundo o IPCA/IBGE, a gasolina acumulou queda de -10,9%, o diesel, de -8,5%, e o etanol, de -15,9%.

Por fim, merecem destaque as alterações, promovidas pelos respectivos órgãos reguladores, de diversos preços monitorados pelo poder público. Nos casos da taxa de água e esgoto e da energia elétrica residencial, reajustes programados para 2020 foram postergados ou mesmo anulados, a fim de aliviar os orçamentos das famílias, sobretudo das menos abastadas. Muitos reajustes em energia ficaram para julho, sem contar que o sobrepreço representado pelas bandeiras tarifárias não está presente: ainda estamos em bandeira verde (sem cobrança extra), quando o mais comum em meses de maio é a bandeira amarela.

Mais recentemente, em 18 de maio, o governo publicou decreto que regulamenta a MP 950/2020, um socorro que pode chegar a R$ 14 bilhões para evitar um rombo no caixa das distribuidoras em razão da isenção de pagamento para consumo até 220 kWh/mês concedida aos consumidores beneficiários da tarifa social.

Outro conjunto de preços monitorados, o de produtos farmacêuticos, teve seu reajuste anual, que normalmente é autorizado pela CMED ao final de março, postergado para junho. Ainda nessa seara, recomendou-se aos planos de saúde que posterguem seus reajustes anuais, previstos para o período de maio a julho, para outubro.

Tudo isso aponta para uma queda dos preços no varejo (IPCA) no acumulado de abril a junho de 2020. Um trimestre de deflação é um evento raro no histórico deste índice de preços (a última ocasião foi no 3º trimestre de 1998).

Essa moderação da inflação ao consumidor abriu espaço para a intensificação do ritmo de corte da Selic pelo BC em sua última reunião (Copom, em 06/05). Mas muito ainda precisa ser feito, e não somente via política monetária, para reanimar a atividade econômica, duramente abalada pela pandemia. E, definitivamente, as taxas de inflação de 2020 e 2021 - projetadas pela LCA em, respectivamente, 1,2% e 2,8% - não deverão ser obstáculos à adoção de medidas adicionais de estímulo à demanda.