Valor econômico, v.21, n.5010, 28/05/2020. Carreiras & Empregos, p. B2

 

Pandemia afeta a carreira de jovens cientistas do país

Barbara Bigarelli

28/05/2020

 

 

O isolamento social na pandemia, que obrigou o fechamento de universidades, centros de pesquisa e levou à necessidade de aderir ao trabalho remoto no Brasil há mais de dois meses, está afetando diretamente a carreira de jovens cientistas brasileiros.

Aos 27 anos, Leila Araújo havia traçado um plano de ouro para 2020: aprovada no mestrado de geociências do Museu Nacional, não solicitou a bolsa da instituição pois conseguira um estágio na França, em uma empresa petrolífera, que bancaria seus custos por seis meses. "Quando fui tirar a documentação, em fevereiro, o consulado já estava fechado. Minha ida para foi suspensa, sem previsão", diz. Especializada em palinologia, que estuda os grãos de pólen e esporos, a cientista iria coletar os dados para estudar a relação estratifica das bacias do Congo com as brasileiras. Sem aulas e sendo a geociência uma ciência feita no campo ou no laboratório, Leila está em casa, em compasso de espera. "Me sinto limitada, não sei como agir. Estou sem aulas, sem dados para coleta, sem renda. A sorte é que moro com a minha mãe".

Mesmo quem têm bolsa e já havia coletado dados também enfrenta desafios. "O momento de fazer ciência hoje exige extrema adaptação", diz Giuliana Zuccoli, 26, bióloga. Quando a quarentena começou, ela estava em um treinamento de cultura de células no Rio, útil ao seu doutorado no Laboratório de Neuroproteômica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Com a universidade fechada e, impossibilitada de seguir com seu doutorado, inscreveu-se em um dos projetos emergenciais da Unicamp, que investiga como o novo coronavírus afeta os neurônios. "É uma sensação estranha ir ao laboratório, quando devemos, todos, ficar em casa. Ao mesmo tempo, sofro com a pressão de ter meu doutorado parado. Mas esse é momento de retribuir à sociedade".

Esse também é o sentimento de Ana Codo, 26, graduada em farmácia-bioquímica, que suspendeu o plano de um mestrado sanduíche em Chicago (EUA). "É difícil estar no laboratório quando 'lá fora' há muita gente morrendo por conta de um vírus que você nem vê no microscópio. Mas é melhor do que estar em casa sem poder fazer nada", diz Ana, que mudou temporariamente seu foco de estudo na Unicamp para investigar a ação do coronavírus em células epiteliais e do sistema imune.

Incertezas no trabalho dos cientistas devem persistir após quarentena
Os cientistas convocados para ir aos poucos laboratórios abertos no país, e atuar em pesquisas do coronavírus, relatam aprender novas técnicas e a oportunidade de expandir um trabalho colaborativo com pesquisadores de outras áreas e não cientistas. É o caso de Leonardo Schultz da Silva, 31, que está em São Vicente (SP), trabalhando com as startups Biobreyer e Biolinker em um projeto do Instituto de Biociência da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp). A iniciativa tem potencial de baratear em até 40% os insumos para os testes da covid-19. Sem conseguir submeter o seu pós-doutorado à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo (Fapesp) antes da pandemia, voluntariou-se no instituto, onde trabalhou por nove anos. No meio do caminho, ganhou uma bolsa de três meses, concedida a brasileiros envolvidos em pesquisas da covid-19 pela organização Dimensions Sciences.

Com o Brasil tornando-se um dos picos da pandemia, o ritmo é de urgência por um tratamento, remédio e vacina. "Precisamos dar uma resposta rápida à sociedade e o que fazíamos em dois meses na bancada de experimentos, estamos entregamos em duas semanas", diz Jaqueline Goes de Jesus, pós-doutoranda do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-SP). A virologista de 30 anos, que trabalha com zika, dengue e chikungunya, chamou atenção por liderar o grupo que sequenciou o genoma do primeiro caso de coronavírus no Brasil. Em apenas 48 horas. No fim de maio, a equipe totalizava 400 mil sequências. "Com essa repercussão, pesquisadores do Brasil todo me contataram. Essa rede será muito útil para monitorar outras epidemias endêmicas no país".

Quem não pôde seguir a pesquisa do laboratório, precisou reprogramá-la para o que é possível ser feito no home office. Em seu doutorado em ciências atmosféricas, Monique Coelho, 26, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, está usando a quarentena para escrever artigos e revisar dados. "Não houve escolha a não ser acreditar que mais para frente será possível retomar o experimental. Mas existe a preocupação com os equipamentos, que sem uso e manutenção, ficam suscetíveis a danos".

Glauber Andrade, biomédico da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) começaria um mestrado envolvendo populações quilombolas. Sem poder visitá-las, como havia se planejado nos últimos meses, está lendo artigos e realizando o levantamento bibliográfico. "A UFRB preza muito por produzir ciência em contato com as comunidades e nós não sabemos quando teremos essa aproximação física de novo", afirma.

O trabalho remoto também virou uma realidade para o engenheiro ambiental Antonio Victor, 33, que atua como pesquisador do Imazon, e mora em Belém (PA). Se a pandemia não tivesse chegado, ele provavelmente estaria iniciando um mestrado em geografia na Universidade de Clark (EUA). Em casa, o trabalho de monitoramento do desmatamento da Amazônia continua "igual", embora Antonio sinta falta do contato presencial dos colegas. "Eu já estava passando as minhas funções a outras pessoas. É frustrante pois foi algo que me preparei nos últimos cinco anos. E nem sei se faz sentido começar o mestrado on-line se a universidade quiser. Porque o que buscava era justamente o networking", afirma.

Esse networking também impacta na astronomia. "São nos congressos que temos as grandes trocas", diz Luidhy Santana-Silva, doutorando do Observatório do Valongo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Uma solução que tem funcionado, diz, são os congressos on-line. "Ontem, eu me reuni com 80 pessoas do mundo em um congresso sobre primeiras galáxias". Seu plano para 2020 era iniciar um pós-doutorado em ondas gravitacionais. "Todos os lugares que submeti cancelaram a seleção". Silva teve de sair do RJ e voltar à sua cidade natal, Fortaleza. Está em um apartamento isolado e a única renda vem do trabalho temporário como pesquisador assistente. "Eu testo algumas coisas, mas o computador da UFRJ é mais potente. Além disso, em casa sofro distrações".

As distrações do home office, bem como o desafio de conciliar cuidados com um filho sem aulas, com o pós-doutorado na USP, são os desafios da bióloga Isabella Bordon, 35. Ela diz que o apoio de seu supervisor José Roberto Machado Cunha da Silva, que a colocou de quarentena logo no início de março e flexibilizou entregas, foi e é fundamental. "Essa visão de que somos mães pesquisadoras e não uma pesquisadora-mãe, onde a maternidade é apenas um adendo, tem crescido. Mas não são todos os chefes de departamento que conseguem ver isso ainda", diz. Para o engenheiro Alain Guimarães, 35, o desafio atual inclui cuidar das duas filhas, com a esposa indo à faculdade, tocar seu mestrado na Escola Politécnica (Poli) da USP e colocar de pé um projeto com colegas para fabricar faceshields com impressão 3D. Com vaquinha virtual e aporte da Fundação Patrimonial Amigos da Poli, o projeto já entregou 7 mil faceshields.

Tocar os experimentos em casa, longe do laboratório, também é um aprendizado na carreira do cientista, segundo Caio Perecin, 31, pesquisador do Laboratório de Micromanufatura (LMI) do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e doutorando em Química na (USP). "Tenho trabalhado mais de casa agora, estudando, fazendo reuniões on-line e planejando muito antes de ir para a bancada. Antes realizávamos mais experimentos em uma rotina de tentativa e erro. Agora, precisamos experimentar com ainda mais planejamento". A despeito de todas as dificuldades, a orientação de cientistas experientes é ter resiliência. "A pandemia está ajudando a mostrar que a ciência é a resposta mais segura para as grandes crises. Espero que essa garotada, principalmente que está sem bolsa e editais, não desista", diz Ana Tereza de Vasconcelos, chefe do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC).

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Incertezas no trabalho dos jovens cientistas devem persistir após quarentena

Barbara Bigarelli

28/05/2020

 

 

Para vários campos de pós-graduação do estudo do Museu Nacional, a pandemia foi um "segundo desastre", após o incêndio de 2018. Na área de linguística, a coordenadora da pós-graduação, Marília Lopes Facó Soares, tenta encontrar uma solução para levar o curso aos alunos indígenas, que formam 70% do curso. Na frente de antropologia social, a preocupação, além da ausência de trabalho em campo, é o bloqueio a acervos. "Como sobreviver à ausência de acesso a bibliotecas? Não tem download de PDF que possa suprir", diz a docente Bruna Franchetto. A pandemia acentuou as dificuldades para trabalhar com ciência no Brasil, na avaliação do físico e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso de Ciência (SBPC), Ildeu Moreira. "A gente já vinha num cenário que muitos jovens pesquisadores brasileiros estavam desestimulados para seguir suas carreiras no país. Tivemos uma redução extrema de recursos do CNPq e Capes, por exemplo, nos últimos sete anos".

As bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ligada ao Ministério da Educação (MEC) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), ligado ao Ministério de Ciência, Tecnologia Inovações e Comunicações (MCTIC) não têm reajuste desde de 2013. Um pesquisador contemplado por elas ganha no mestrado R$ 1,5 mil por mês e, no doutorado, R$ 2,2 mil.

Levantamento realizado pela Novelo, a pedido do Valor, indica que o valor médio do total de bolsas concedidas em todas as linhas de pesquisa financiadas pelo CNPq diminuiu de R$ 19.663,88 em 2014 para R$ 11.789,03 em 2019.

"Com a pandemia, dificuldades de outra ordem surgiram: grande parte dos laboratórios e universidade estão fechados. Muitos jovens pesquisadores estão perdidos sem saber como continuar a pesquisa ou se terão bolsa quando puderem fazê-lo", diz Ildeu. A Capes prorrogou em três meses as bolsas vigentes, medida que contemplou, até o fim de maio, 12 mil pesquisadores. O CNPq informou medidas como possível prorrogação da bolsa por 60 dias para quem está no exterior ou teve com atividade acadêmica paralisada. Treze cientistas jovens brasileiros, de até 35 anos, ouvidos pelo Valor confirmam que vivem em um clima de incertezas sobre sua pesquisa e carreira.

Os desafios devem permanecer mesmo se o isolamento for relaxado no país. Já é possível visualizá-lo, em parte, conhecendo a história da brasileira Rafaela Rosa-Ribeiro, 32 anos. Ela chegou à Itália em 2019 para um estágio do seu pós-doc, financiado pela Fundação de Amparo a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo (Fapesp), no laboratório de Elisa Vicenzi, coordenadora do primeiro grupo italiano que isolou o SARS-CoV, vírus que emergiu em 2002 na China. Com a pandemia, seus projetos paralisaram e ela foi recrutada para uma pesquisa que testou fármacos que impedem o coronavírus de entrar na célula humana. "Passei dois meses em lockdown, fazendo rodízio no laboratório. Quando eu saía a rua, parecia um cenário de guerra", diz.

Com a Itália afrouxando o isolamento, Rafaela começa a retomar seus projetos, envolvendo o vírus da zika. "Os laboratórios estão voltando a funcionar em rodízio e com agendamento, o que exige repensar a sequência dos experimentos o que, por sua vez, implica em atraso nas entregas". Ela ainda não tem acesso a vários equipamentos, como microscópios, tampouco aos treinamentos previstos para utilizá-los. O jeito, ainda, é se adaptar, diz.