O globo, n. 31673, 25/04/2020. Especial Coronavírus, p. 14

 

Cloroquina: estudo e agência alertam para riscos cardíacos

25/04/2020

 

 

Trabalho publicado na 'Nature' e órgão regulador americano apontam efeitos colaterais, de quadros de arritmia a morte súbita
A Food and Drug Administration (FDA), agência regulatória americana equivalente à Anvisa no Brasil, alertou ontem para os riscos da administração da hidroxicloroquina contra a Covid-19

fora de hospitais e testes clínicos. O órgão mencionou riscos ao coração, na linha de um estudo brasileiro recente e de trabalho publicado ontem na "Nature Medicine". A FDA afirma que há registros de arritmia e fibrilação ventricular, prolongamento do chamado intervalo QT — preenchimento do coração pelo sangue entre as batidas —e até mortes causadas pelo remédio, mas não detalhou o número de óbitos. A hidroxicloroquina, usada contra doenças como a malária, tem sido fortemente defendida pelo presidente Donald Trump nos EUA, país mais afetado pela pandemia. A agência afirmou que o medicamento sumiu da maior parte das prateleiras. "Vamos continuar a investigação dos riscos associados ao uso da hidroxicloroquina e da cloroquina contra a Covid-19 e faremos um anúncio público quando tivermos mais informações", disse a FDA, em nota. Na quinta-feira, a agência reguladora de medicamentos da União Europeia também alertou para efeitos colaterais da droga e recomendou a médicos monitorar pacientes nos quais o remédio for administrado.

 COMBINAÇÃO PERIGOSA

Nos EUA, a FDA já havia autorizado a prescrição em caráter emergencial. Agora, a orientação é acompanhada de cautela. A agência reforça que os efeitos podem ser ainda piores se combinados com outros medicamentos, como o antibiótico azitromicina, e em pacientes com doenças crônicas, cardíacas e renais. O estudo publicado pela "Nature" apontou efeitos cardíacos em pacientes da Covid-19 após a administração da hidroxicloroquina combinada com azitromicina. O trabalho, conduzido por pesquisadores de Nova York, indicou que os dois medicamentos proporcionaram, mesmo de forma independente, risco de arritmia e morte súbita.

A conclusão coincide com um estudo brasileiro conduzido por acadêmicos de diversas instituições —incluindo a Fiocruz e a Universidade de Brasília (UnB) —, que acabou suspenso depois que os cientistas observaram efeitos colaterais deletérios à saúde. O trabalho americano, que abrangia 84 pacientes, identificou o prolongamento do tempo que o coração demora para ser preenchido por sangue no espaço entre os batimentos cardíacos. Essa condição anormal pode levar à morte e foi identificada na maior parte dos pacientes — que tinham, em média, 63 anos e eram majoritariamente homens (74%). Um dos motivos especulados é que os efeitos tenham sido causados por problemas preexistentes, como doenças crônicas. Em 11% deles, o prolongamento identificado por meio de eletrocardiogramas foi ainda maior, e o risco de arritmia e morte súbita foi considerado severo. Os autores do estudo pontuaram que quatro pacientes morreram durante o período de experimentos de falência múltipla, sem indícios de que os óbitos tenham ocorrido pelos efeitos identificados no trabalho. Apesar das conclusões, os pesquisadores não se posicionaram contra a prescrição. Os acadêmicos recomendaram que o intervalo QT dos pacientes que receberem a combinação do remédio com azitromicina seja monitorado constantemente, em especial daqueles que apresentem doenças crônicas.

 PARECER DO CFM

O Conselho Federal de Medicina (CFM) emitiu na quinta-feira parecer autorizando que médicos receitem a cloroquina e a hidroxicloroquina para tratamento da Covid-19, em casos específicos. A autorização, no entanto, não significa que o conselho recomende o uso das drogas. Em entrevista ao GLOBO, o presidente do órgão, Mauro Ribeiro, afirmou que a qualquer momento o parecer pode ser revisto, a depender da conclusão de estudos. — Estamos sendo extremamente cautelosos porque, à luz da ciência hoje, não existe nenhum tratamento farmacológico para Covid-19. Nem hidroxicloroquina, nem azitromicina, nem plasma, nem antirretrovirais. Até o momento, não tem nada. É zero. O que nos guia, que são as evidências científicas fortes, nós não temos. (Paula Ferreira, de Brasília, com a Reuters)