O globo, n. 31673, 25/04/2020. País, p. 6

 

‘Fazer a coisa certa sempre’

Sérgio Moro

25/04/2020

 

 

Leia o pronunciamento de Moro

“Bom dia a todos. Quero cumprimentar não só os jornalistas, o pessoal da imprensa, mas, especialmente, o pessoal do Ministério da Justiça e Segurança Pública aqui presente, muitos também gostariam de estar aqui presentes, mas nós buscamos ao máximo evitar aglomerações, não conseguimos totalmente, mas, enfim. Primeiro, eu queria lamentar esse evento na data de hoje. Estamos passando por uma pandemia do Covid-19. Ontem, uma informação lamentável de 407 óbitos, 3.313 óbitos no total. Então, durante essa pandemia, infelizmente tendo que realizar esse evento. Busquei ao máximo evitar que isso acontecesse, mas foi inevitável, então, peço a compreensão de todos pela circunstância adversa, mas não foi por minha opção.

Antes de entrar no assunto específico, eu queria fazer só algumas reflexões gerais para poder justificar minhas decisões. Antes de assumir o cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública, eu fui juiz federal por 22 anos, tive diversos casos criminais relevantes. Desde 2014, em particular, nós tivemos a operação Lava-Jato, que mudou o patamar de combate à corrupção no país. Claro que existe muito ainda a ser feito, mas aquela grande corrupção, que, em geral, era impune, esse cenário foi modificado. Isso foi um trabalho do Judiciário, do Ministério Público, de outros órgãos e, na parte da investigação principalmente da Polícia Federal.

Desde 2014, na Lava-Jato, a gente sempre tinha uma preocupação constante de uma interferência do Executivo nos trabalhos da investigação e isso poderia ser feito de diversas formas: troca do diretor-geral, sem que houvesse causa, troca do superintendente. Tivemos, no início da Lava-Jato, o superintendente Rosalvo Ferreira. Convidei aqui para o ministério, fazendo um grande trabalho. Depois, foi sucedido pelo superintendente Valeixo, também nomeado diretor-geral da Polícia Federal, fazendo também um grande trabalho. Houve essa substituição, mas essa substituição na época foi pela aposentadoria do doutor Rosalvo e, enfim, foi garantida a autonomia da Polícia Federal durante esses trabalhos lá de investigação.

É certo que o governo da época tinha inúmeros defeitos, aqueles crimes gigantescos de corrupção que aconteceram naquela época, mas foi fundamental a manutenção da autonomia da PF para que fosse possível realizar esses trabalhos, seja de bom grado ou seja pela pressão da sociedade, essa autonomia foi mantida e isso permitiu que os resultados fossem alcançados. Isso é até um ilustrativo da importância de garantir o Estado de Direito, o rule of law, a autonomia das instituições de controle e de investigação. Lembrando aqui até um episódio que um domingo qualquer, durante aquelas investigações, lembro que foi o superintendente Maurício Valeixo que recebeu uma ordem de soltura ilegal do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, então condenado por corrupção, preso. Essa ordem, emitida por um juiz incompetente. Depois, isso foi reconhecido nas demais instâncias.

Foi graças à autonomia dele, e o sentimento da necessidade de cumprimento de dever que ele comunicou às autoridades judiciárias e foi possível rever essa ordem de prisão ilegal, antes que ela fosse executada, demonstrando empenho dessas autoridades e a importância da autonomia das organizações de controle.

Final de 2018, essa é uma história um pouco repetida, eu recebi o convite do então eleito presidente da República, Jair Bolsonaro, e já falei publicamente diversas vezes, é fácil repetir essa história, porque é absolutamente verdadeira. E fui convidado a ser ministro da Justiça e da Segurança Pública. O que foi conversado com o presidente, foi no dia 1º de novembro, foi que nós teríamos um compromisso com o combate à corrupção, ao crime organizado e à criminalidade violenta. Inclusive, me foi prometido na ocasião carta branca para nomear todos os assessores, inclusive desses órgãos policiais, como Polícia Rodoviária Federal e a própria Polícia Federal.

Na ocasião, até aproveitando aqui um breve parêntese, para desmistificar um dado, foi divulgado equivocadamente por algumas pessoas que eu teria estabelecido como condição para assumir o Ministério da Justiça uma nomeação ao Supremo Tribunal Federal. Nunca houve essa condição, até porque seria algo de aceitar um cargo de ministro da Justiça pensando em outro, isso não é da minha natureza.

Eu realmente assumi esse cargo, fui criticado e entendo essas críticas. Mas a ideia era realmente buscar um nível de formulador de políticas públicas aqui numa alta posição do Executivo.

De aprofundar o combate à corrupção e levar essa maior efetividade em relação ao crime organizado. Tem uma única condição que eu coloquei, não ia revelar, mas isso eu acho não faz mais sentido manter em segredo. Isso pode ser confirmado tanto pelo presidente quanto pelo general Heleno. Eu disse que, como estava abandonando 22 anos da magistratura —contribuí 22 anos para a Previdência, e perdi, saindo da magistratura, essa Previdência —, pedi apenas, já que seríamos firmes contra a criminalidade, especialmente a criminalidade organizada, que é muito poderosa, se algo acontecesse, pedi que minha família não ficasse desamparada, sem uma pensão. Foi a única condição que coloquei para assumir essa posição específica do Ministério da Justiça.

Permito-me aqui dizer que o presidente concordou com todas, com esse compromisso, nem foi uma condição: combate à corrupção, combate à criminalidade violenta, combate à criminalidade organizada. Falou até publicamente que me daria carta branca. Eu já tinha uma expertise por trabalhar com polícia, como juiz, evidentemente no combate à criminalidade organizada, e aceitei porque entendo que realmente fazer com que as coisas evoluíssem, e minha avaliação é que essa aceitação na época ao convite foi muito bem acolhida pela sociedade. E também me vi como, estando no governo, como também garantidor, claro que existem outras instituições importantes, Judiciário, Senado, Supremo Tribunal Federal, Ministério Público, mas entendia pelo meu passado de juiz e meu compromisso com Estado de Direito que eu também poderia ser um garantidor da lei, da imparcialidade e da autonomia dessas instituições.

Dentro do ministério, me permitam dizer, a palavra mote tem sido ‘integração’. Nós atuamos muito próximos das forças de segurança estaduais, até mesmo municipais. Nós, realmente, trabalhamos duro contra a criminalidade organizada.(...) No momento, o Ministério da Justiça está voltado principalmente ao enfrentamento da pandemia. Isso prejudicou um pouco os planos em curso, embora continuassem, mas estamos cuidando principalmente de EPI, de vacinação, de atenção às forças de segurança, de coordenação, de se preocupar com o Plano Nacional de Segurança.

Enquanto o Coaf esteve no Ministério da Justiça, eu não pedi que o Coaf viesse, mas foi proposto que ele fosse colocado na estrutura do Ministério da Justiça.

Nós o fortalecemos. Depois ele acabou sendo transferido para outros órgãos, onde tem presente que a estrutura fortalecida se manteve. Isso é muito positivo, também é um órgão de inteligência importantíssimo, que nós devemos, inclusive, aumentar sua estrutura e melhorar o seu funcionamento.

Tivemos o projeto de lei anticrime, ( .... ) que poderia ter avanços maiores, infelizmente não foi aprovado em sua totalidade, mas, ainda assim, na minha avaliação, ele representou um grande avanço. (...)

Bem, em todo esse período tive apoio do presidente Jair Bolsonaro em vários desses projetos, outros nem tanto.

Mas, a partir do segundo semestre do ano passado, passou a haver uma insistência do presidente na troca do comando da Polícia Federal. Isso, inclusive, foi declarado publicamente pelo próprio presidente.

Houve primeiro um desejo de trocar um superintendente da Polícia Federal do Rio de Janeiro.

Sinceramente, não havia nenhum motivo para essa substituição, mas, conversando com o superintendente em questão, ele queria sair do cargo por questões exclusivamente pessoais. Então, nesse cenário, acabamos concordando, eu e o diretor-geral, em promover essa troca com uma substituição técnica, com uma substituição de um indicado pela polícia. Agora tem que fazer uma referência bastante rápida. Eu não indico superintendente da Polícia Federal. Única pessoa que indiquei na Polícia Federal foi o diretor Maurício Valeixo.

Não é meu papel fazer indicações de superintendentes e assim tem sido no ministério como um todo. Eu sempre tenho solicitado, dado autonomia ao pessoal que trabalha comigo. A palavra certa não é subordinado, é equipe, para que eles façam as melhores escolhas. (...) O que não é aceitável de maneira nenhuma são essas indicações políticas. Claro que, às vezes, existem indicações positivas, mas, quando se começa a preencher esses cargos técnicos, principalmente de polícia, por questões políticas partidárias, provavelmente, o resultado não é bom para a corporação.

O presidente, no entanto, passou a insistir também na troca do diretor-geral. O que que eu sempre disse ao presidente? 'Presidente, eu não tenho nenhum problema em trocar o diretor-geral da Polícia Federal,

mas eu preciso de uma causa. E uma causa normalmente relacionada a uma insuficiência de desempenho , um erro grave’. E, no entanto, o que eu vi durante todo esse período, até pelo histórico do próprio diretor-geral, que é um trabalho bem feito. Várias dessas operações importantes de combate ao crime organizado. Operações também de combate à corrupção que foram relevantes. Poderiam até ter mais operações.

Mas, normalmente essas operações elas maturam durante algum tempo e, ano passado, em particular, nós ficamos aí quatro meses sem poder movimentar inquéritos envolvendo lavagem de dinheiro, por uma decisão judicial. Isso também prejudicou um pouco os trabalhos.

(...) O grande problema de realizar essa troca, primeiro, havia uma violação a uma promessa que me foi feita inicialmente, que eu teria carta branca. Em segundo lugar, não havia uma causa para essa substituição, e estaria claro que estaria ali havendo uma interferência política na Polícia Federal que gera um abalo na credibilidade, não minha, minha também, mas também do governo, desse compromisso maior que temos que ter com a lei. E entra em impacto também, na minha opinião, ma própria efetividade da Polícia Federal. E ia gerar uma desorganização. Não aconteceu durante a Lava-Jato, a despeito de todos os problemas de corrupção dos governos anteriores.

Houve até um episódio em que foi nomeado um diretor no passado, com intuito de interferência política e não deu certo, ficou pouco mais de 3 meses.

A própria instituição rejeitou a essa possibilidade, e o problema é que, nas conversas com o presidente, e isso ele me disse expressamente, que não era só troca do diretorgeral, haveria também intenção de trocar superintendentes, novamente o superintendente do Rio de Janeiro, outros superintendentes provavelmente viriam em seguida, superintendente da Polícia Federal de Pernambuco... Sem que fosse me apresentado uma razão, uma causa para realizar esses tipos de substituições que fossem aceitáveis. Muito tempo pelo presidente busquei postergar essa decisão, às vezes até sinalizando que poderia concordar no futuro com essa possibilidade e até, num primeiro momento, pensando, não, de repente pode ser feito, pode ser alterado, mas cada vez mais me veio a sinalização de que seria um grande equívoco realizar essa substituição.

Ontem, conversei com o presidente, houve essa insistência do presidente. Falei ao presidente que seria uma intervenção política, e ele disse que seria mesmo. Falei que isso teria um impacto para todos, que seria negativo, mas, para evitar uma crise durante uma pandemia —não tenho vocação para carbonário, muito pelo contrário, acho que o momento não é apropriado pra isso —, eu sinalizei: ‘Vamos substituir o Valeixo por alguém que represente a continuidade dos trabalhos, alguém com perfil absolutamente técnico’. E que fosse uma sugestão minha também. Na verdade, nem minha, uma sugestão da própria PF.

Eu sinalizei com o nome do atual diretor-executivo da Polícia Federal, Disney Rosseti. Eu nem tenho uma grande familiaridade com Rosseti, mas é uma pessoa de carreira, de confiança e, como eu disse, essas questões não pessoais, não são preferências pessoais, são questões que têm que ser decididas tecnicamente. Fiz essa sinalização, mas não obtive resposta. O presidente tem a preferência por alguns nomes que seriam da indicação dele, não sei qual que vai ser exatamente a escolha.

Foi ventilado o nome de um delegado que passou mais tempo no Congresso do que na ativa na Polícia Federal. Foi indicado, sugerido o nome do atual diretor da Abin.

Tem até um bom nome dentro da Polícia Federal.

Mas o grande problema é que não é tanto essa questão de quem colocar: o problema é por que trocar e permitir que seja feita a interferência política no âmbito da Polícia Federal. O presidente me disse mais de uma vez que queria ter uma pessoa da confiança pessoal dele, que ele pudesse ligar, que ele pudesse colher informações, relatórios de inteligência. Seja diretor, seja superintendente. E realmente não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação. As investigações têm que ser preservadas. Imaginem se, durante a própria Lava-Jato, o ministro, diretor-geral, o ex-presidente Lula, a ex-presidente Dilma ficassem ligando para a Polícia Federal em Curitiba para colher informações sobre as investigações em andamento.

A autonomia da PF, com respeito à autonomia da aplicação da lei, seja a quem for, é um valor fundamental que temos que preservar dentro de um Estado de Direito. O presidente me disse isso expressamente, e algo que realmente eu não entendi apropriado. (...) Há uma possibilidade que se

afirma que o Maurício Valeixo gostaria de sair. Isso não é totalmente verdadeiro. O ápice da carreira de qualquer policial federal, de todo delegado federal, é a direçãogeral da Polícia Federal, e entrou com uma missão.

Claro que depois de tantas pressões para que ele saísse de fato, ele até manifestou a mim: ‘Talvez seja melhor eu sair para diminuir essa cisma e nós conseguirmos realizar uma substituição adequada’.

Ele sairia para alguma adidância, mas nunca isso voluntariamente, mas decorrente dessa pressão que, a meu ver, não seria apropriada. ( .... )

O presidente também me informou que tinha preocupação com inquéritos em curso no Supremo Tribunal Federal,

em que a troca também seria oportuna, da Polícia Federal, por esse motivo. Também não é uma razão que justifique a substituição, até algo que gera uma grande preocupação. Enfim, eu sinto que tenho o dever de tentar proteger a instituição, a Polícia Federal e, por todos esses motivos, ainda busquei uma solução alternativa, para tentar evitar uma crise política durante uma pandemia. Acho que o foco deveria ser o combate à pandemia, mas entendi que eu não podia aí deixar de lado esse meu compromisso com o Estado de Direito.

A exoneração que foi publicada, eu fiquei sabendo pelo Diário Oficial, pela madrugada. Eu não assinei esse decreto. Em nenhum momento isso foi trazido, em nenhum momento o diretor-geral da Polícia Federal apresentou um pedido formal de exoneração. Depois, ele me comunicou que ontem à noite recebeu uma ligação dizendo que ia sair a exoneração a pedido e (perguntando) se ele concordava. Ele disse, ‘eu vou fazer o quê?’, se ele já está sujeito a exoneração a pedido. Mas, o fato é que não existe nenhum pedido que foi feito de maneira formal. Sinceramente, fui surpreendido, achei que isso foi ofensivo, vi que depois a Secom confirmou que houve essa exoneração a pedido, mas isso de fato não é verdadeiro. Para mim, esse último ato também é uma sinalização de que o presidente me quer fora do cargo, não me quer presente aqui no cargo.

Essa precipitação de realização da exoneração, não vejo muita justificativa. Eu tenho até outras divergências, tive outras divergências com o presidente da República durante essa permanência aqui. (...) Tive pontuais divergências, mas eu acho que, como ministro, estou numa relação em que eu tenho que preservar também a questão da hierarquia. Mas, não vou aqui falar dessas outras divergências, isso fica para uma outra ocasião. De todo modo, o meu entendimento foi que eu não tinha como aceitar essa substituição. Há uma questão envolvida também da minha biografia como juiz, a lei, o Estado de Direito, (...) acima de tudo tenho que preservar o compromisso que assumi inicialmente com o próprio presidente, de que seríamos firmes no combate à corrupção, crime organizado e criminalidade violenta.

E um pressuposto necessário para isso é que nós temos que garantir o respeito à lei, à própria autonomia da Polícia Federal contra interferências políticas. O presidente indica, ele tem essa competência, ele indica o diretor-geral, mas ele assumiu um compromisso comigo inicial de que seria uma escolha técnica, que eu faria essa escolha e o trabalho vem sendo realizado. Poderia ser alterado o diretor-geral desde que tivesse uma causa consistente. Não tendo uma causa consistente e percebendo que essa interferência política pode levar a relações impróprias entre o diretorgeral, entre os superintendentes, com o presidente da República, (é) algo que realmente não posso concordar.

Um pouco sobre o futuro, de todo modo eu agradeço. Agradeço ao presidente da República, a nomeação que foi feita. Atrás, acho que nós tínhamos um compromisso e eu fui fiel a esse compromisso. (...) Eu, infelizmente, não tenho como persistir com o compromisso que eu assumi ser ter condições de preservar a autonomia da PF para realizar seus trabalhos. Ou sendo forçado a sinalizar um concordância com uma interferência política na Polícia Federal, cujos resultados são imprevisíveis. (...) O meu futuro pessoal, após disso, eu abandonei esses 22 anos de magistratura. Infelizmente, é um caminho sem volta. Mas quando eu assumi, eu sabia dos riscos. Vou descansar um pouco. Nesses 22 anos foi muito trabalho, em especial, durante esse período da Lava-Jato. (...) Vou procurar mais adiante um emprego. Não enriqueci no serviço público. Nem como magistrado, nem como ministro. E quero dizer que independentemente de onde eu esteja, sempre vou estar à disposição do país para ajudar o que quer que seja, ajudar nesse período da pandemia com outras atitudes, mas, enfim, sempre respeitando o mandamento do Ministério da Justiça nessa gestão, que é fazer a coisa certa sempre. Muito obrigado.”