O globo, n. 31675, 27/04/2020. Opinião, p. 2

 

Crise impõe cortes nos privilégios da alta burocracia

27/04/2020

 

 

Governo e Congresso travam dura batalha sobre como compensar a abrupta queda de arrecadação tributária dos estados. A maioria dos governos estaduais já se encontrava em insolvência, mas a situação foi agravada pela confluência das crises provocadas pela pandemia do novo coronavírus e pelo colapso dos preços do petróleo no mercado mundial. O impasse está na definição dos limites do socorro financeiro da União.

O governo federal vê riscos em atender aos estados, sem garantias efetivas sobre o uso dos recursos na emergência sanitária. Equivaleria a um “cheque em branco” aos governadores. Por isso, quer impedir alterações na legislação tributária estadual (no caso, ICMS) durante a etapa de socorro e congelar os gastos com efeito continuado, como reajustes salariais, por dois anos, ou seja até final do ano eleitoral de 2022.

Os governadores, naturalmente, insistem em que a União compense os estados na proporção do desastre tributário, como prevê o regime federativo, sem imposições exageradas nessa aguda crise. Argumentam com a queda significativa na receita própria (na média, 20% em abril) quando há necessidade de preservar serviços essenciais, como os de saúde e segurança pública.

É preciso reconhecer: os dois lados têm razão. Se é necessário gastar, também, não é admissível uma política fiscal isenta de contrapartidas de eficácia no controle dos gastos. Existe, de fato, potencial risco de explosão da dívida pública.

Na realidade, essa crise está demonstrando que o custo operacional do setor público brasileiro já havia chegado a um ponto muito além da capacidade de pagamento da sociedade. O quadro das principais despesas da União, dos estados e dos municípios é revelador. Elas se concentram no pagamento de juros da dívida do setor público (juros em queda, pelo menos), na folha salarial civil e militar e na previdência do funcionalismo. Têm sido crescentes e impeditivas aos investimentos eficientes em áreas críticas como a rede pública de saúde.

Inverteu-se, na prática, o princípio de que o Estado serve ao povo. A catástrofe da pandemia empobrece a todos. A população perde renda, empresas fecham, mas o que ainda não se viu é disposição política para desmontar a trama de privilégios tecida nas folhas de pagamentos do Executivo, Legislativo e Judiciário.

Por semanas discutiu-se o auxílio de R$ 600 aos mais vulneráveis. Porém, em momento algum se mencionaram os 35 tipos de parcelas remuneratórias (além do salário, vencimentos, subsídio, soldo, 13º e indenizações) que transformaram alta burocracia em casta. Também não se ouviu menção aos supersalários no serviço público, como os de juízes e procuradores que recebem até 720 salários mínimos num único mês, a título de “vantagens eventuais”, rubrica para verbas indenizatórias.