O globo, n. 31675, 27/04/2020. Segundo Caderno, p. 1

 

Coronavírus Freud também explica

Renata Izaal

27/04/2020

 

 

Aniversários de duas obras importantes do pai da psicanálise jogam luz sobre nossa conduta diante de um tempo de incertezas

É no mínimo instigante que as efemérides de dois textos fundamentais de Sigmund Freud aconteçam em meio a uma pandemia que traz incertezas, medo, isolamento social e morte. A situação é séria, assim como é a condição humana sobre a qual o pai da Psicanálise debruça em “Além do princípio do prazer” e “O malestar na civilização”, obras publicadas, respectivamente, em 1920 e 1930. Mas do que tratam esses textos, um centenário e o outro quase, de títulos tão sugestivos? E de que maneira eles nos ajudam a entender a nossa humanidade diante da Covid-19? Freud explica.

Com a publicação de “Além do princípio do prazer”, Freud fez o que os psicanalistas chamam de “virada de 20”. Até então, sua obra era fundamentada no dualismo entre pulsões sexuais e pulsões de autopreservação. Mas sua experiência na clínica, o zeitgest europeu no período e acontecimentos como a Primeira Guerra Mundial e a gripe espanhola o fizeram pensar que há na constituição pulsional do ser humano uma força destrutiva. A partir dessa ideia, Freud criou um segundo dualismo, entre pulsão de vida e pulsão de morte, que, junto com o conceito de trauma, representam a tal virada. Seus desdobramentos levaram Freud, então com mais de 60 anos, a uma década de intensa produção de textos culturais (que inclui outros clássicos como “Psicologia das massas e análise do eu”, de 1921, e “O futuro de uma ilusão”, de 1927) que culminaram na publicação de “O mal-estar na civilização”, em 1930.

Nesse contexto, é importante lembrar que Freud foi diretamente impactado pelos principais acontecimentos da época. Os soldados que voltavam da Primeira Guerra Mundial com neuroses traumáticas o fizeram retornar ao conceito do trauma, que já havia abandonado, para pensar sobre a repetição de situações que não obedecem ao princípio do prazer, que é a nossa busca por gratificação imediata. Além disso, três de seus filhos se alistaram, e Freud conviveu com o medo de os perder no conflito. Terminada a Guerra, sua filha Sophie morreu, vítima da gripe espanhola, em 1920.

— “Além do princípio do prazer” é o embrião de uma ideia que chega ao ápice com “O mal-estar na civilização”. Freud começou a refletir sobre a questão da transitoriedade e sobre como a civilização europeia se tornou tão destrutiva — afirma Daniel Kupermann, psicanalista e livre docente do Instituto de Psicologia da USP.

Entre 1920 e 1930, Freud para de falar de quadros psicopatológicos para focar no masoquismo, que, segundo ele, é o desejo de servidão. Ele aponta para a religião e o exército, duas instituições fundadas na obediência, e afirma que a servidão se alimenta da pulsão de morte. Para o criador da Psicanálise, quando o sujeito renuncia a sua subjetividade para obedecer de forma acrítica, ele deseja se sentir protegido. Esse masoquismo, essa servidão, é em troca de proteção, de se livrar do estado de desemparo, como o “Fausto”, de Goethe, que Freud admirava.

A ideia do desamparo nos ajuda a entender a atitude negacionista de alguns diante da pandemia do novo coronavírus. Uma incerteza, como a que vivemos agora, gera insegurança e nos remete ao desamparo infantil como um lembrete de que o nosso controle do mundo tem limites.

— O negacionismo, ou a recusa da realidade, é um modo de se defender pela via da inversão do desamparo pela onipotência. Dizer que é uma “gripezinha” ou se sentir invulnerável porque tem preparo de “atleta”, como fez o presidente Jair Bolsonaro, é uma defesa psíquica — diz Kupermann. — E por que o negacionismo combate a ciência? Porque ela tem um relacionamento com a realidade. A ciência precisa de provas .

O psicanalista Alexandre Costa, coordenador de ensino da Formação Freudiana, lembra que a agressividade de que Freud trata nos dois textos é vivida contra o outro, uma ideia que se repete agora diante do novo coronavírus:

— O vírus surge de modo invisível, mas, no momento em que se aproxima, é preciso encontrar um lugar fora do nosso grupo para essa agressão. Primeiro, ele é algo que vem de fora, uma ameaça estrangeira que só atinge quem viaja; depois, como a letalidade parece ser maior entre idosos, eles devem ser isolados do resto da população. Como não conseguimos lidar com a ameaça, discriminamos, como acontece hoje com os chineses, e como aconteceu com os judeus na época de Freud.

É importante lembrar que, para Freud, a destruição tem uma dimensão criativa. Existem maneiras de o sujeito enfrentar a desestabilização que a pulsão de morte causa em seu aparelho psíquico. Ele pode sucumbir ao supereu tirânico e adoecer, por exemplo, deprimindo, ou criar estilos de existência, entre eles os afetos, a arte e a ciência. No período entre 1920 e 1930, Freud escreve que a pulsão de morte alimenta o apetite destrutivo, mas também afirma que renunciar ao prazer é sucumbir. Para ele, faz parte da saúde psíquica acreditar em um projeto e investir nisso, o que chamou de “ideal do eu”.

Mas como investir em projetos futuros diante de um tempo de incertezas, como o provocado pela Covid-19? A psicanalista Mônica Donetto Guedes já percebe mudanças na clínica:

—Fomos privados de uma série de coisas, mas esse lugar não é necessariamente ruim. É possível criar novas formas de consumir a vida, buscar formas de satisfação e pensar possibilidades futuras. Há quem esteja olhando para outras coisas e se conectando com aspectos mais simples de seu modo de existir, por exemplo.

Quem pode ficar em casa, mesmo trabalhando de forma remota e tendo que dar conta das obrigações pessoais diárias, tem se sentido pressionado para ocupar ainda mais o tempo. As redes sociais estão cheias de sugestões de lives, aulas de ginástica, cursos on-line e coaches da quarentena pregando como cada um deve levar sua vida nesse momento. Porém, assumir o cansaço pode ser a chave para a dimensão criativa descrita por Freud.

—Existe uma dimensão positiva da preguiça, que é promover um estado de contemplação criativa. O vazio psíquico, que não é sinônimo de falta, é uma abertura para a criação. Ficar se ocupando demais é uma maneira de não experimentar novos modos de existência —ensina Daniel Kupermann.

“Fomos privados de uma série de coisas, mas esse lugar não é ruim. É possível criar novas formas de consumir a vida e pensar possibilidades futuras” _

Mônica Donetto Guedes, psicanalista