O globo, n. 31681, 03/05/2020. Opinião, p. 2

 

Insegurança institucional

Merval Pereira

03/05/2020

 

 

A dificuldade que o IBGE está encontrando para acessar os números telefônicos de brasileiros para realizar pesquisas não presenciais por causa da Covid-19 é devida a sermos um país com alto índice de crimes digitais e termos um governo inconfiável institucionalmente, que confunde órgãos de Estado com os de governo. Prova disso é o decreto de outubro do ano passado que instituiu o Cadastro Base do Cidadão, que será uma “base integradora” de dados pessoais de todos os brasileiros, com o objetivo de regulamentar o compartilhamento de dados entre diversos órgãos do governo.

Houve polêmica à época, pois especialistas apontaram o perigo de termos vagos no decreto, abrindo caminho para a utilização sem controle de dados, e descumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados, que entrará em vigor em agosto deste ano. Já existe no Congresso uma proposta para alterar o decreto governamental, dando segurança ao cidadão de que seus dados não serão utilizados indevidamente. O decreto não foi aprovado ainda devido à crise da Covid-19.

A presidente do IBGE, Susana Cordeiro Guerra, está disposta a reescrever a instrução normativa que orienta o uso dos dados das operadoras telefônicas para a complementação da PNADContínua e a PNAD Covid-19, explicitando o cumprimento de várias normas nacionais e internacionais de segurança de dados, exigidas pelos autores da ação de inconstitucionalidade, acatada liminarmente pela ministra Rosa Weber e que será julgada na próxima quarta-feira no plenário virtual do Supremo.

A maioria delas já é adotada pelo IBGE, e outras estão definidas na própria Medida Provisória, como nomeação de encarregado de proteção de dados, realização de auditoria externa, parâmetros de segurança, transparência e controle de acesso dos dados, anonimização, garantia do exercício dos direitos do titular dos dados, formas de descarte.

Definição do uso está dada na MP, assim como a limitação do período da utilização dos dados, até o fim da emergência sanitária. Seria relativamente fácil, como se vê, garantir a segurança dos dados com as normas internas do IBGE. Elas são rigorosas, e nunca houve desconfiança sobre o uso indevido dos dados.

Nas pesquisas presenciais, todos os dados são coletados, e o pesquisador sabe exatamente com quem está falando. Se algum pesquisador quisesse fazer algo de ilegal, saberia até mesmo como é a casa por dentro, pois até anos atrás era uma ação cidadã participar de pesquisas que permitem ao governo definir politicas públicas.

Nos últimos tempos, com o aumento do índice de criminalidade, tem sido mais difícil fazer as pesquisas domiciliares, porque as pessoas têm medo de abrir a porta. Por isso está havendo essa reação aqui, e não em outros países. Além da falta de confiança no governo.

A preocupação é o governo ter um instrumento que ninguém tem: todas as características do cidadão, e mais o número do telefone. A Receita sabe quanto um determinado cidadão ganha, mas não sabe se é negro ou branco, urbano ou rural, quantos filhos, se mora na favela ou no asfalto, se no interior ou capital. E não sabe o telefone.

O problema mais delicado, por isso, é o tamanho da amostra. O IBGE alega que tecnicamente é preciso ter uma base de 200 milhões de telefones para dar continuidade à pesquisa PNADContínua que começou ano passado. Há juristas e especialistas em segurança de dados, no entanto, que consideram que esse volume de informação é desnecessário e perigoso de estar nas mãos do governo.

A estranheza tem a ver com inconfiabilidade do governo, não do IBGE. Se o governo quiser, poderá ter uma base de dados que ninguém tem para campanhas políticas direcionadas, mandar WhatsApp e SMS com fake news à vontade. Por mais que a presidente do IBGE considere impossível isso acontecer, pelas barreiras de segurança de normas nacionais e internacionais impostas pelo próprio governo na MP, além de ofensiva ao órgão e aos técnicos que o compõem, essa desconfiança é um fato, e denota o grau de insegurança institucional que vivemos. Ao mesmo tempo, deixar de fazer as pesquisas seria admitir a falência do Estado brasileiro.