Valor econômico, v.21, n.5012, 01/06/2020. Política, p. A7

 

Para líderes, saída da crise depende da Justiça Eleitoral

Andrea Jubé

Marcelo Ribeiro

01/06/2020

 

 

Num cenário de acirramento da crise política, em que apesar da pandemia, manifestantes contrários ao presidente Jair Bolsonaro saíram ontem às ruas pela primeira vez, parlamentares da cúpula do Congresso acreditam que o fim da turbulência passa pelas ações do Poder Judiciário. A avaliação é que a saída da crise implica o aprofundamento da investigação sobre o esquema de disseminação de "fake news", numa ação conjunta entre Supremo Tribunal Federal (STF) e Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

No sábado, Bolsonaro publicou uma mensagem nas redes sociais demonstrando consciência de que o cerco armado pelo Judiciário fecha-se em torno dele. O presidente escreveu que "tudo aponta para uma crise", ao listar um resumo de ações judiciais que atingem a sua gestão. "Primeiras páginas dos jornais abordaram com diferentes destaques, as decisões envolvendo a atuação do STF, da Polícia Federal, do Tribunal de Contas da União e do TSE em relação ao governo Bolsonaro e seus aliados", anunciou. Em seguida, ele detalhou cada procedimento em seu desfavor.

Ontem, Bolsonaro compareceu às manifestações que se tornaram rotineiras na Praça dos Três Poderes.

A avaliação de líderes e parlamentares influentes ouvidos pelo Valor nos últimos dias é de que, apesar do aumento da tensão política - com o início da ocupação das ruas por grupos de oposição ao presidente (ver também página A8) - ainda não há ambiente político para impeachment. Em paralelo, a percepção dos políticos é de que o procurador-geral da República, Augusto Aras, não demonstra disposição de oferecer eventual denúncia contra Bolsonaro por crime comum ao fim do inquérito que investiga a tentativa de interferência do presidente na Polícia Federal.

Um dos principais articuladores da Câmara disse ao Valor que a tendência é que Aras desvie a eventual acusação de crime comum para crime de responsabilidade, o que obrigaria o Congresso a deflagrar o impeachment. Mas com o Centrão amparando o governo, esse processo dificilmente prosperaria. Por isso, o mais provável hoje é que o Legislativo faça como Aras, ou seja, "terceirize" o problema: no caso, deixando a palavra final da crise para Justiça Eleitoral.

Chegou a alguns líderes a informação de que o STF tem munição para novas ações que miram o esquema de disseminação de notícias falsas, supostamente mantido por apoiadores de Bolsonaro, com igual ou maior fôlego do que a operação conduzida pela Polícia Federal na última quarta-feira. O relator do inquérito, ministro Alexandre de Moraes, estaria longe de esgotar o arsenal.

Pelo menos 36 pedidos de impeachment de Bolsonaro repousam sobre a mesa do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), mas as lideranças ouvidas pelo Valor observam que é o cerco judicial que se fecha em torno de Bolsonaro.

No STF, pelo menos três inquéritos preocupam o presidente, e podem culminar em conjuntos probatórios suficientes para embasar denúncias da Procuradoria-Geral da República (PGR) por crime comum.

O ministro Celso de Mello é relator do inquérito instaurado a partir das denúncias do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, segundo o qual Bolsonaro teria tentado interferir na Polícia Federal.

E o ministro Alexandre de Moraes é relator de outros dois inquéritos que envolvem Bolsonaro indiretamente: o relativo às "fake news", e outro que apura quem esteja por trás dos atos antidemocráticos em que apoiadores do presidente pediram o fechamento do Congresso e do STF. Existe a suspeita de que os financiadores da propagação de conteúdo falso contra adversários de Bolsonaro também subsidiem os atos de ataques às instituições. Outra preocupação do presidente é que essa investigação alcance o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ).

Em paralelo, há pelo menos seis ações no TSE que pedem a cassação da chapa encabeçada por Bolsonaro. Mais de uma fundamenta-se na acusação de que Bolsonaro se elegeu a partir de um esquema ilegal de disparo em massa de conteúdo falso que prejudicou seus adversários na campanha.

Lideranças parlamentares acreditam que com os desdobramentos do inquérito, surgirão outros doadores importantes da campanha de Bolsonaro suspeitos de financiarem o suposto esquema de impulsionamento de "fake news".

Nos autos do inquérito, Moraes autorizou a quebra do sigilo fiscal e bancário do dono da rede de lojas Havan, Luciano Hang, um dos empresários mais próximos de Bolsonaro. O período da investigação contábil abrange a campanha eleitoral: de julho de 2018 a abril de 2020.

O dono da rede de academias Smart Fit, Edgard Corona, também foi alvo da operação de quarta-feira, mas chegou a lideranças do Congresso a informação de que outros empresários do mesmo grupo estão na mira das investigações. A se confirmarem essas suspeitas, comprovariam eventual abuso de poder econômico e caixa dois na campanha bolsonarista.

O PT pediu ao TSE o compartilhamento dessas provas nos autos da ação em que pede a cassação da chapa vencedora. Na sexta-feira, o ministro Og Fernandes, do TSE, notificou Bolsonaro e Mourão para que se pronunciem em três dias sobre esse requerimento.

Um eventual julgamento favorável do TSE à cassação da chapa também agradaria a cúpula do Congresso que considera o vice-presidente Hamilton Mourão uma "esfinge", "completamente imprevisível".

Em 2017, o TSE concluiu um julgamento apertado sobre a cassação da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer. Por quatro votos a três, a ação do PSDB foi rejeitada. Por pouco, a maioria do tribunal não depôs Temer, que já estava no comando do Executivo porque Dilma havia sofrido impeachment.

Mas políticos experientes ressalvam que Temer era um presidente impopular, que não encabeçou a chapa: por isso, seria menos traumático o seu afastamento pela Corte eleitoral, enquanto Bolsonaro é um líder ainda com apelo popular, eleito com 57 milhões de votos.

Lideranças do Senado e da Câmara continuam rechaçando um impedimento de Bolsonaro pela via política, porque ele ainda tem consistente apoio popular. Pesquisa Datafolha divulgada na última quinta-feira mostrou que 33% dos entrevistados considera o governo ótimo ou bom, embora 43% o classifique como ruim ou péssimo.

Mas com 30% de respaldo popular e sem povo na rua pedindo a deposição do presidente, não há impeachment, enfatizou um político do MDB, que acompanhou de perto o afastamento da presidente Dilma Rousseff.

O parlamento acompanha com lupa o movimento de Bolsonaro em relação a Aras. O presidente fez uma "visita-surpresa" ao procurador-geral na semana passada. Em sua live semanal, declarou que se surgir uma terceira vaga no STF - ressalvando que espera que "ninguém ali desapareça" - o lugar é de Aras.

Contudo, num cenário em que provas de um crime comum praticado pelo presidente se avolumem e Aras seja pressionado a oferecer denúncia, se Bolsonaro mantiver a popularidade, o Centrão garantirá os 172 votos necessários para barrar o avanço da ação criminal no STF, como ocorreu com Michel Temer.

Ainda que o diagnóstico do grupo de Rodrigo Maia seja que nem metade do bloco embarcou de vez na base do governo, a aposta de que o agravamento do quadro político obrigará Bolsonaro a abrir "a chave do cofre", oferecendo espaços mais atraentes. Em 2017, depois que a Câmara barrou o avanço de duas denúncias contra Temer, um consórcio de forças encabeçado por Rodrigo Maia e pelo PP deu ao então deputado Alexandre Baldy o comando do Ministério das Cidades.

Mas os líderes ouvidos pelo Valor afirmam com segurança que se a popularidade de Bolsonaro derreter nos próximos meses, com a escalada das mortes na pandemia e o aumento do desemprego, nem mesmo a oferta de ministérios de porteira fechada conseguirá deter a debandada do Centrão. (Colaboraram Renan Truffi e Lu Aiko)