Correio braziliense, n. 20830 , 03/06/2020. Política, p.2

 

O difícil consenso no combate às fake news

Alessandra Azevedo

03/06/2020

 

 

MÍDIAS SOCIAIS » Senado adia votação do projeto de lei para combater notícias falsas, em meio à enxurrada de críticas de especialistas e entidades defensoras de direitos de usuários da internet. Falta entendimento sobre a definição do que são informações fraudulentas

Sem consenso sobre o Projeto de Lei 2630/2020, que sugere medidas para combater a propagação de fake news, o Presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), deixou a discussão para a próxima semana. O assunto começaria a ser debatido, ontem, no plenário, mas o autor da matéria, Alessandro Vieira (Cidadania-SE), e o relator, Angelo Coronel (PSD-BA), pediram o adiamento. O motivo foi a falta de consenso em alguns pontos.

Os líderes das bancadas no Senado concordaram que é preciso mais tempo para amadurecer o debate, intensificado nos últimos dias com a abertura do inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF) que apura assédio virtual e fake news contra ministros da Corte. O objetivo do projeto é impedir esse tipo de ataque e garantir transparência na divulgação de informações em redes sociais, como Facebook e Twitter, e em aplicativos de troca de mensagens, como WhatsApp e Telegram.

Não há entendimento, no entanto, sobre como isso pode ser feito. As regras e os limites que serão estabelecidos na nova Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência geram controvérsias, pelas lacunas e por medo de eventuais abusos. Os senadores deixaram clara a insatisfação: até ontem, haviam apresentado 63 sugestões de mudanças no texto, por emendas.

O Senado tende a aprovar uma versão mais enxuta do texto inicial, apresentado em 13 de maio. Mas, como o relator não emitiu o parecer, que é a matéria a será pautada no plenário, os parlamentares ainda não têm como avaliar o teor e decidir o voto. “Considerando que o relatório não foi apresentado até o momento e que é importante que todos tenham segurança quanto ao seu conteúdo, solicitei a retirada de pauta do PL 2630”, explicou Vieira, no Twitter.

O autor da proposta sugeriu mudanças a Angelo Coronel, na última segunda-feira, com o objetivo de facilitar um acordo entre os parlamentares — inclusive, na Câmara, para onde a matéria vai depois que passar pelos senadores. Vieira defende, entre outros pontos, que o texto deixe de definir o que é “desinformação”, conceito que determinaria que conteúdos poderiam ser deletados.

Regras

Apesar de não ter divulgado o parecer, o relator antecipou pontos. Os conteúdos publicados, segundo ele, vão ser checados por verificadores independentes somente quando houver denúncia dos usuários das redes. O relatório não vai proibir a criação de contas anônimas, mas pode exigir que elas tenham acesso a menos recursos. Na sessão deliberativa de ontem, Angelo Coronel fez questão de negar que o texto cria mecanismos de censura nas redes.

Pela proposta, as plataformas não poderão remover publicações, ainda que sejam mentirosas, de usuários verificados. A responsabilidade das empresas deve ser evitar que as contas distribuam esse tipo de conteúdo, o que poderá ser feito pela checagem de CPFs e pela limitação de atividade de usuários anônimos. “A Constituição não está sendo cumprida. É vedado o anonimato. Não podemos permitir que a pessoa entre numa plataforma, crie um nome falso e saia ferindo a honra das pessoas”, disse o relator.

O parecer deve sugerir que as plataformas solicitem a identidade dos usuários antes da criação de perfis e limitem o número de contas por pessoa. Isso poderia ser feito por exigência de CPF, a mais comentada, RG ou outros documentos. Os parlamentares também propuseram ao relator que as contas de “robôs” que disparam mensagens em massa sejam identificadas para a plataforma e para os usuários.

Outro ponto que pode ser inserido no projeto é a exigência de que operadores e administradores de contas vinculadas ao poder público sejam identificados publicamente. Com isso, toda a sociedade deverá saber quem usa as contas oficias da Presidência da República, por exemplo. Além disso, o uso de verbas públicas para promover qualquer ação proibida pela lei será classificado como improbidade administrativa.

Urgência

No Twitter, Vieira reiterou “a urgência de que (o projeto) seja apreciado e votado pelo Senado, mas garantindo ampla publicidade e debate”. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), acredita que “este é o melhor momento” para votar o PL. Ele se comprometeu a tentar construir, com Alcolumbre, um texto de consenso entre deputados e senadores. “A sociedade está cansada de fake news, uso de robôs para disseminar ódio, informações negativas contra adversários e instituições”, argumentou.

Algumas entidades, no entanto, pedem que o assunto seja discutido depois, pela necessidade de mais debate sobre o tema. Se for mal formulado, o projeto pode restringir liberdades individuais, alegam. “Sem a existência de comissões, o debate aprofundado sobre o tema se mostrou comprometido desde o início”, dizem, em nota.

O documento é assinado por entidades como a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), além de empresas, a exemplo de Facebook, Instagram, Whatsapp e Twitter.

Frase

“A Constituição não está sendo cumprida. É vedado o anonimato. Não podemos permitir que a pessoa entre numa plataforma, crie um nome falso e saia ferindo a honra das pessoas”

Angelo Coronel, relator do projeto de lei

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Entrevista - Marcelo Vitorino: "Projeto é muito superficial"

Alessandra Azevedo

03/06/2020

 

 

“Projeto é muito superficial”

 Qual é a sua análise sobre o projeto de lei das fake news, em discussão no Senado? Resolve o problema?

Não leva em consideração fatores importantes para o combate às fake news. Ele apequena toda a questão do combate aos crimes virtuais e trata, simplesmente, de responsabilização das plataformas. Não representa avanço em relação ao combate. É um projeto focado basicamente em obrigar plataformas de redes sociais a pedirem identificação de propriedades de contas.

Há reclamações de que isso seria invasão de privacidade. Como avalia?

Tem um problema, que é o Estado determinar que uma empresa seja obrigada a validar contas, que tenha CPF de usuários, por exemplo. Apesar de ser viável, acho que não é legítimo num Estado como o nosso. A gente não precisa obrigar a plataforma a pegar CPF. O que tem de evitar é que conteúdo anônimo seja colocado na internet de forma a prejudicar alguém, e esse alguém ficar sem direito à retratação.

Como a lei deveria abordar a questão do anonimato?

Aqueles que defendem que a internet é uma terra livre não querem que acabe o anonimato. Mas o anonimato não é direito de nenhum cidadão brasileiro. Quando você nasce, precisa ser registrado. A Constituição garante a liberdade de expressão, vedado o anonimato.

Como fazer isso?

As plataformas têm capacidade de fazer validação de contas até por biometria. Não precisa necessariamente do CPF. Só precisa validar uma conta diante de uma constatação de que algo aconteceu. Não precisa validar todas. A maioria das pessoas publica conteúdos que não fazem mal a ninguém. Não seria mais fácil fazer responsabilização da plataforma em caso de conteúdo anônimo?

E no caso de fake news veiculadas por contas que não são anônimas?

Nesse caso, a empresa não é responsável. Apenas entrega os dados da pessoa, e o processo de verificação vai para o autor. Isso é questão definida no Marco Civil da Internet, que esse projeto, inclusive, não considera. Teria de revogar o item que fala que a plataforma não pode ser responsabilizada.

Que outras lacunas observa no texto?

Não garantir o direito à atualização. Se você tem informações desatualizadas sobre você publicadas na internet, deve ter o direito de cobrar atualização, na mesma página. Isso já ataca fake news, que, muitas vezes, quem propaga usa links desatualizados. O projeto também não trata da proporcionalidade da pena de crime contra a honra, quando é no ambiente virtual. Uma coisa é ter sido ofendido na rua, outra coisa é ter publicado na internet, da qual pode nunca mais sair. Há vários assuntos em aberto.

Acredita que esses tópicos não foram incluídos porque geram controvérsia, ou por falta de interesse no tema?

É ignorância mesmo. Os propositores estão pensando em resolver o básico: tem conta falsa no Facebook, vamos resolver isso, e pronto. Estão querendo mirar na árvore e não estão enxergando a floresta. É um texto muito superficial. Tenho certeza de que não fizeram estudo amplo em legislação mundial. Não estou vendo movimentação no sentido de conversar com especialistas. Um projeto desses, no momento em que se está discutindo CPMI das fake news, deveria, no mínimo, esperar a CPMI acabar, porque de lá sai um relatório.