Correio braziliense, n. 20830 , 03/06/2020. Política, p.4

 

Duros recados para Bolsonaro

Jorge Vasconcellos

03/06/2020

 

 

INTERFERÊNCIA NA PF » Ao arquivar pedido de apreensão do celular do presidente, ministro Celso de Mello menciona ameaça do chefe do Planalto de não cumprir ordem judicial e cita Ulysses Guimarães: “Traidor da Constituição é traidor da pátria”

Com uma série de advertências à cúpula do governo, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), resolveu, ontem, não dar conhecimento ao pedido de deputados da oposição para que o celular do presidente Jair Bolsonaro fosse apreendido. A decisão foi tomada no inquérito que investiga suposta interferência do chefe do Executivo na Polícia Federal. Em seu despacho, o magistrado, relator da investigação, mencionou a declaração do comandante do Planalto de que não entregaria o celular, caso a apreensão do aparelho fosse determinada. Mello alertou que o descumprimento de decisão judicial por parte de um chefe de Estado “configura crime de responsabilidade”, o que abriria caminho para um processo de impeachment. Ele também mencionou uma frase do ex-deputado federal Ulysses Guimarães de que “traidor da Constituição é traidor da pátria”.

O pedido de apreensão do celular de Bolsonaro foi apresentado ao STF numa notícia-crime de autoria do PDT, PV e PSB. Os partidos solicitaram, também, a apreensão dos celulares do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) e da deputada Carla Zambelli (PSL-SP). Mello decidiu não dar prosseguimento à ação por não ver constitucionalidade sequer para julgá-la, por entender que não há legitimidade da parte de deputados para propor diligências em investigações, o que é exclusividade do Ministério Público.

A decisão de Mello encerra um dos capítulos da grave crise entre o Executivo e o STF. Em 22 de maio, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, divulgou a Nota à Nação Brasileira, na qual criticou o pedido de apreensão do celular do presidente e alertou para “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. No meio político, o comunicado foi interpretado como uma ameaça de golpe militar, o que Heleno negou.

O chefe do GSI emitiu o comunicado logo depois de Mello encaminhar o pedido de apreensão do celular de Bolsonaro para apreciação do procurador-geral da República, Augusto Aras, o que é uma formalidade jurídica. Na semana passada, o PGR emitiu parecer contrário, com o argumento de que não cabe a partidos políticos fazer esse tipo de solicitação.

Bolsonaro também desafiou o STF, na ocasião. “No meu entender, com todo o respeito ao Supremo Tribunal Federal, nem deveria ter encaminhado ao procurador-geral da República. Tá na cara que eu jamais entregaria meu celular. A troco de quê? Alguém está achando que eu sou um rato para entregar um telefone meu numa circunstância como essa?”, disse à Jovem Pan.

Na decisão de ontem, Mello criticou a declaração de Bolsonaro. “É tão grave a inexecução de decisão judicial por qualquer dos Poderes da República (ou por qualquer cidadão) que, tratando-se do chefe de Estado, essa conduta presidencial configura crime de responsabilidade”, escreveu.

O ministro afirmou que eventual “desobediência presidencial” seria desrespeito à Carta Magna. “Em uma palavra: descumprir ordem judicial implica transgredir a própria Constituição da República, qualificando-se, negativamente, tal ato de desobediência presidencial e de insubordinação executiva como uma conduta manifestamente inconstitucional”, ressaltou.

Mello também ressaltou que, quando o Judiciário intervém para conter excessos do Executivo, está apenas desempenhando o papel que lhe foi atribuído pela Constituição. “É importante ter presente que o Judiciário, quando intervém para conter os excessos do poder e, também, quando atua no exercício da jurisdição penal ou como intérprete do ordenamento constitucional, exerce, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República. O regular exercício da função jurisdicional, por tal razão, projetando-se no plano da prática hermenêutica — que constitui a província natural de atuação do Poder Judiciário —, não transgride o princípio da separação de poderes”, enfatizou.

Acusações

O inquérito relatado pelo decano do STF foi aberto depois das acusações feitas pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro, ao pedir demissão do cargo em abril. Segundo ele, Bolsonaro tentou interferir politicamente na PF para ter acesso a investigações da corporação e proteger a família e amigos.

Trechos da decisão do decano do STF: disparos dirigidos ao presidente

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Investigação de vazamento 

Renato Souza

Sarah Teófilo

03/06/2020

 

 

O ministro da Justiça, André Mendonça, determinou à Polícia Federal que investigue o vazamento de dados pessoais do presidente Jair Bolsonaro na internet. As informações foram expostas por hackers que se identificam como integrantes do grupo Anonymous. Entre os dados tornados públicos pelo grupo estão CPF, RG, endereços, telefones, e-mails e informações das declarações de Imposto de Renda.

O grupo diz que atua “em defesa do povo” e acusa o Bolsonaro de ter “envolvimento com milícia e propagação de fake news”, entre outras ações ilegais. No inquérito, a corporação vai avaliar por qual meio ocorreu o acesso aos dados e quem são os responsáveis. Como envolvem o chefe de Estado, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) também deve atuar no caso.

Além do presidente, três filhos dele, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), e senador Flávo Bolsonaro (sem partido) e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), e outros parlamentares que apoiam o governo tiveram as informações publicadas em conta do Twitter e sites criados pelo grupo. Também foram alvos os ministros da Educação, Abraham Weintraub; e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves; e o empresário Luciano Hang. “As investigações devem apurar crimes previstos no Código Penal, na Lei de Segurança Nacional e na Lei das Organizações Criminosas”, tuitou Mendonça.

Pelas redes socais, Bolsonaro afirmou que o vazamento é uma tentativa de amedontrá-lo. Entre as informações estavam, ainda, dados de um cartão de crédito. “Em clara medida de intimidação o movimento hacktivista Anonymous Brasil divulgou, em conta do Twitter, dados do presidente da República e familiares. Medidas legais estão em andamento, para que tais crimes não passem impunes”, declarou.

Ao perceber que estavam em atividades contas que expõem as informações sigilosas de autoridades, o Twitter chegou a derrubar alguns perfis, mas outros foram criados em seguida. Internautas utilizaram as informações para filiar os envolvidos ao Partido dos Trabalhadores (PT). Ontem de manhã, era possível ver diversos nomes aguardando resposta da legenda quanto à aprovação. A sigla anunciou que barrou as inscrições. Outros tentaram fazer compras em lojas virtuais, principalmente, de celulares, e Luciano Hang teve os dados usados para pedir o auxílio emergencial de R$ 600 dado pelo governo nesta pandemia.

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Aras: Constituição não permite intervenção

Ingrid Soares

Augusto Fernandes

03/06/2020

 

 

O procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou, ontem, por meio de nota, que a Constituição não abarca a hipótese de intervenção militar, como pregam determinados grupos e até políticos pelo país. Ele frisou que as Forças Armadas podem ser usadas em ações pontuais, como garantir a lei e a ordem num eventual cenário de ruptura institucional, mas que as instituições estão funcionando normalmente. As declarações ocorrem em meio a um clima de tensão entre o Executivo e o Judiciário.

Em entrevista ao programa Conversa com Bial, da TV Globo, Aras afirmou que os militares podem agir para garantir a competência dos Três Poderes. “As Forças Armadas, no plano constitucional, atuam como garantes da Constituição. Quando o artigo 142 estabelece que as Forças Armadas devem garantir o funcionamento dos Poderes constituídos, esta garantia é nos limites da competência de cada Poder”, enfatizou. “Um Poder que invade a competência de outro Poder, em tese, não há de merecer a proteção desse garante da Constituição, porque, se esses Poderes constituídos se manifestarem, dentro das suas competências, sem invadir a competência dos demais Poderes, não precisamos enfrentar uma crise que exija dos garantes uma ação efetiva de qualquer natureza.”

O presidente Jair Bolsonaro e apoiadores citam o artigo 142 para criar a narrativa de que não seria ilegal um decreto de “intervenção militar” para conter o que consideram excessos do Supremo Tribunal Federal (STF).

As declarações de Aras, que foram vistas como endosso à intervenção militar e à quebra do regime democrático, repercutiram no mundo político e nas redes sociais. Diante da controvérsia, Aras, na nota, rechaçou atuação política das Forças Armadas. “A Constituição não admite intervenção militar. Ademais, as instituições funcionam normalmente. Os Poderes são harmônicos e independentes entre si. Cada um deles há de praticar a autocontenção para que não se venha a contribuir para uma crise institucional. Conflitos entre Poderes constituídos, associados a uma calamidade pública e a outros fatores sociais concomitantes, podem culminar em desordem social”, escreve.

Críticas

A posição de Aras na TV Globo gerou críticas dentro e fora do Ministério Público Federal. Para o subprocurador-geral da República Nicolao Dino, “contraria o que diz a Constituição, pois considera a falsa premissa de que a democracia é tutelada pelas armas”. “É uma visão equivocada do regime democrático e do sistema de freios e contrapesos, pois este funciona a partir do equilíbrio entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e sob a fiscalização do MP (art 127, CF). Num estado democrático de direito, o crivo de qualquer possível conflito entre Poderes é o Judiciário, sendo o filtro último o STF”, acrescentou Dino. Para um outro integrante da PGR, Aras claramente recuou na nota, em relação ao que disse na entrevista, como forma de reduzir danos.

Em sua conta pessoal no Twitter, o ministro Gilmar Mendes, do STF, afirmou que é “incompatível com a Constituição de 1988 a ideia de que as Forças Armadas podem fechar o STF ou o Congresso”. “O Exército não é milícia”, disse.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) divulgou um parecer jurídico em que conclui que o artigo 142 da Constituição não autoriza uma intervenção militar. Para a entidade, a Carta não confere às Forças Armadas a “atribuição de intervir nos conflitos entre os Poderes em suposta defesa dos valores constitucionais, mas demanda sua mais absoluta deferência perante toda a Constituição”.

“A interpretação que confere às Forças Armadas a atribuição de um Poder Moderador, ao contrário, ignora os limites constitucionais a elas impostos, para livrá-las de qualquer controle constitucional, tornando-as a intérprete máxima da Carta Cidadã”, sustentou o parecer. “Ignora, ademais, que os conflitos entre os Poderes devem ser resolvidos pelos mecanismos de freios e contrapesos devidamente regulados pelo texto constitucional, ao estabelecer controles recíprocos entre os poderes.”

Procurado, o Ministério da Defesa afirmou que as Forças Armadas “sempre cumpriram as suas atribuições constitucionais previstas no artigo 142, sem necessidade de parecer jurídico oficial, não estando previsto no referido artigo ‘intervenção militar’ conforme já ressaltado publicamente, por mais de uma vez”. (Com Agência Estado)

Frase

“A interpretação que confere às Forças Armadas a atribuição de um Poder Moderador, ao contrário, ignora os limites constitucionais a elas impostos, para livrá-las de qualquer controle constitucional”

Trecho do parecer da OAB