Correio braziliense, n. 20834 , 07/06/2020. Brasil, p.7

 

Estratégias da desinformação

Alessandra Azevedo

Marina Barbosa

07/06/2020

 

 

Presidente Jair Bolsonaro dificulta a divulgação sobre a propagação da covid-19, apesar da curva crescente de casos e quase 36 mil mortes no país, com atrasos cada vez maiores na atualização dos números e omissão de dados para dificultar a contagem de vítimas

Mesmo diante da curva crescente de casos e mortes pelo novo coronavírus no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro insiste em dificultar a divulgação de dados sobre a propagação da doença. As estratégias são variadas: atrasos cada vez maiores na atualização dos números, omissão de dados para dificultar a contagem de ocorrências e a possibilidade de revisão de registros de óbitos, apesar da subnotificação já admitida por integrantes do próprio governo.

Bolsonaro confirmou, ontem, que, a partir de agora, os dados relativos à covid-19 só serão divulgados após as 22h — ou seja, depois que os principais telejornais do país foram ao ar e em cima do horário de fechamento da maioria dos jornais impressos —, como antecipou o Correio na última sexta-feira. A mudança seria uma maneira de “evitar subnotificação e inconsistências”, justificou o presidente, no Twitter.

Os estados, no entanto, enviam as informações até as 15h todos os dias. Durante a gestão de Luiz Henrique Mandetta à frente do Ministério da Saúde, a divulgação era feita às 17h, em coletiva de imprensa diária. Depois, passou para às 19h, com entrevistas cada vez mais raras. Desde que assumiu a pasta, em 15 de maio, no lugar de Nelson Teich, o ministro interino Eduardo Pazuello não concedeu nenhuma coletiva para comentar o balanço.

O governo também mudou a metodologia de divulgação dos dados, o que dificulta ainda mais o trabalho da imprensa. No boletim diário, o ministério não coloca mais o número total de casos, contados desde o início da pandemia, mostra apenas os registros de recuperados, novos diagnósticos e mortes nas últimas 24h. Para chegar às informações completas, é preciso calcular por conta própria.

O levantamento ficou mais difícil, com mudanças feitas ontem na página oficial do ministério na internet. Depois de um dia fora do ar, o site voltou a funcionar com informações restritas, no mesmo esquema dos boletins diários, apenas com novas contaminações e mortes, além do número de pessoas recuperadas — que fica em destaque, apesar de ser bem inferior ao de novos casos.

Também não é mais possível baixar os dados em planilhas, o que facilitava a análise por parte dos especialistas e da imprensa. Ou seja, a população não tem mais acesso às informações sobre o histórico no país. Devido à falta de transparência do governo federal, a Universidade Johns Hopkins precisou interromper o acompanhamento da propagação no Brasil. A instituição faz levantamentos globais sobre a disseminação do novo coronavírus.

Recontagem

Além de dificultar a apuração, o ministério cogita mudar números já divulgados, segundo Carlos Wizard, futuro secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos da pasta, que acusou os gestores públicos de registrarem como se fossem em decorrência da covid-19 mortes que não teriam a ver com a doença. Os dados atuais seriam “fantasiosos ou manipulados” por interesses orçamentários dos estados, disse Wizard, na última sexta-feira, ao jornal O Globo.

O presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Alberto Beltrame, classificou a medida como uma “tentativa autoritária, insensível, desumana e antiética de dar invisibilidade aos mortos pela covid-19.” A fala “grosseira, falaciosa, desprovida de qualquer senso ético, de humanidade e de respeito, merece nosso profundo desprezo, repúdio e asco”, afirmou, em nota de repúdio publicada ontem.

Para Beltrame, Wizard “menospreza  a inteligência de todos os brasileiros” ao afirmar que secretários de Saúde alteram dados sobre mortes decorrentes da covid-19 em busca de mais dinheiro da União. “O secretário, além de revelar sua profunda ignorância sobre o tema, insulta a memória de todas aquelas vítimas indefesas desta terrível pandemia e suas famílias”, diz a nota.

Transparência

Diante das críticas sobre a mudança na apresentação dos oficiais, a Defensoria Pública da União (DPU) foi à Justiça Federal de São Paulo para exigir transparência do Executivo. A DPU entrou com um pedido de liminar, ontem, cobrando a apresentação de todas as informações relativas aos casos confirmados e às mortes decorrentes da covid-19 no Brasil.

A ação apresentada ao plantão judicial pede que o governo retome imediatamente a publicação dos dados e exige que o boletim diário volte a ser apresentado pelo ministério até as 19h e de forma integral. O defensor João Paulo Dorini, que assina o documento, argumenta que é dever do poder público “informar correta e adequadamente à população todos os atos adotados no combate à disseminação da doença.”

Além de defender a maquiagem dos dados, o presidente Jair Bolsonaro segue ignorando as medidas de distanciamento social para evitar a maior propagação do novo coronavírus. Na manhã de ontem, usou dois helicópteros da Força Aérea Brasileira para acompanhar uma blitz da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na BR-020. Na ocasião, sem máscara e acompanhado por alguns de seus ministros, Bolsonaro aproximou-se de um aglomerado de pessoas para fazer fotos. O presidente também não usou máscara durante visita ao Comando de Artilharia do Exército, em Formosa (GO).

__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Duras críticas ao negacionismo

Alessandra Azevedo

Marina Barbosa

07/06/2020

 

 

O governo federal recebeu duras críticas às tentativas de esconder informações relativas ao novo coronavírus, como o histórico de casos e mortes, e o atraso na divulgação dos dados diários. Juristas, parlamentares e várias entidades representativas da sociedade civil rechaçaram a postura negativista do Ministério da Saúde. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes alertou que “a manipulação de estatísticas é manobra de regimes totalitários”, em publicação no Twitter, ontem.

O governo tenta ocultar os números para “reduzir o controle social das políticas de saúde”, escreveu Gilmar. “O truque não vai isentar a responsabilidade pelo eventual genocídio”, completou o ministro, acrescentando as hashtags #CensuraNão” e #DitaduraNuncaMais. Em entrevista ao Estadão, publicada no início da noite, ele comentou que os pronunciamentos contrários à atuação do Executivo, passam um recado claro: “Vamos parar de brincar de ditadura.”

O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta também criticou a tentativa do governo de maquiar dados oficiais. “É muito ruim, é uma tragédia o que a gente está vendo, de desmanche da informação”, disse ontem, em live promovida pelo Instituto de Direito Público (IDP). “Parece-me que o que estão querendo fazer é uma grande cirurgia nos números dos protocolos públicos”, afirmou. Para ele, “não informar significa o Estado ser mais nocivo do que a doença.”

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), engrossou as críticas e avisou que, se o Executivo não voltar atrás na decisão, a própria Câmara pode passar a compilar os dados estaduais para oferecer um levantamento geral da situação no país.

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Três perguntas para...

07/06/2020

 

 

Bruno Dantas, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU)

Você sugeriu que os estados enviem os números de casos do novo coronavírus, diariamente, aos tribunais de contas, para que seja feito um balanço diário até as 18h. Como seria esse esforço coletivo?

O TCU só tem competência para fazer determinações ao Ministério da Saúde, mas esses dados não são da pasta, são das secretarias estaduais. Os tribunais de contas dos estados e do Distrito Federal podem obrigá-las a fornecer as informações, sob pena de multa. A proposta é fazer uma articulação cooperativa: os tribunais estaduais requisitam os dados, e o TCU pode consolidá-los. O levantamento seria divulgado imediatamente.

O que falta para que a ideia seja colocada em prática?

É uma ideia minha, que eu espero que o TCU acate. É possível que o assunto seja abordado na próxima reunião, na quarta-feira. Para ser colocada em prática, seria preciso um protocolo para uniformizar o recebimento das informações, definir até que horas os estados podem passar esses dados e quanto tempo teríamos para consolidar. Os dados são os mesmos divulgados até as 15h para o Ministério da Saúde, bastaria fornecer também para os tribunais de contas. Mas é preciso acompanhar ao longo da semana, porque há interesse de outras instituições em fazer a consolidação também.

O TCU também pode atuar para que o governo volte a divulgar o histórico de casos nos boletins e no site?

No momento, não é questão de atuar ou julgar a atuação do governo. A ideia é de cooperação, já que estamos enxergando dificuldades operacionais no Ministério da Saúde. Não estamos avaliando se tem culpado e se a demora é intencional ou não. O que importa é que todos tenham estatísticas confiáveis para que tomem decisões. É nisso que a gente está focando agora. No futuro, certamente chegará a hora de analisar e aplicar punições àqueles que, eventualmente, tenham falhado ou atrasado voluntariamente essa divulgação.