Correio braziliense, n. 20836 , 09/06/2020. Brasil, p.6

 

STF manda governo retomar atualização

Bruna Lima

Maria Eduarda Cardim

09/06/2020

 

 

Ministro Alexandre de Moraes determina que o Ministério da Saúde volte a informar os dados acumulados da pandemia. A pasta havia anunciado lançamento de plataforma com metodologia que separa número de mortes em 24h da quantidade de registros feitos no dia

Com a promessa de lançar, ainda hoje, uma plataforma interativa para expor os números do novo coronavírus no Brasil, o Ministério da Saúde recuou em algumas restrições tomadas na última semana. A pasta anunciou, à tarde, em coletiva, que voltaria a informar os números totais de casos e óbitos pela covid-19, omitidos nos balanços diários pelo governo desde sexta-feira. Os últimos registros indicam que o Brasil tem, hoje, 37.134 mortes e 707.412 infectados com a doença. A manobra do ministério, no entanto, durou pouco. No fim da noite de ontem, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que a pasta retomasse a divulgação dos acumulados no portal oficial.

A liminar concedida por Moraes atende a ação apresentada pelos partidos Rede Sustentabilidade, PSol e PCdoB contra a “manipulação estatística do governo Bolsonaro”, diz o texto. “A retenção dessas importantíssimas informações inviabiliza o acompanhamento do avanço da covid-19 no Brasil, além de atrasar a correta implementação de política pública sanitária de controle e prevenção da doença”, argumenta a ação. Na decisão, o ministro deu prazo de 48 horas para que a Advocacia Geral da União (AGU) prestasse as informações “que entender necessárias”.

Também, ontem, o Ministério da Saúde informou que pretende atualizar o boletim diário às 18h. “Se nós conseguirmos resolver os problemas de ordem técnica, a gente consegue receber todos os dados, conforme o combinado, até as 16h de Brasília, e divulgar os dados até as 18h”, informou o secretário-executivo, Élcio Franco. Segundo ele, a decisão foi pactuada com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Desde a última quarta-feira (3), o boletim tem sido reportado por volta das 22h por orientação do presidente Jair Bolsonaro, estratégia para atrapalhar a rotina dos noticiários, como revelou o Correio.

 A principal mudança do novo modelo é a contagem de casos e mortes por data de ocorrência. Até o momento, a pasta divulga os registros inseridos no sistema nas últimas 24 horas, independentemente de quando ocorreram. “Em um primeiro momento, a gente vinha trabalhando com a data de notificação, mas ela prejudica a análise. Nossa intenção é trabalharmos com a data de ocorrência da morte. À medida que a gente conseguir estabelecer o sistema com os dados de estados e municípios, vamos conseguir verificar a curva com a sua evolução real”, ressaltou Franco.

O diretor do Departamento de Análise de Saúde e Vigilância de Doenças Não Transmissíveis, Eduardo Macário, garantiu que os dados de mortes que ocorreram em dias anteriores, mas que forem confirmados daqui para frente, estarão disponíveis para o público. O ministério ainda afirmou que os usuários da nova plataforma conseguirão visualizar quantas mortes foram notificadas no dia e a que data se refere cada óbito.

Segundo Franco, a mudança é uma tentativa de melhoria na forma de comunicação e, com isso, a pasta busca a integração e concentração das informações para tornar mais “amigável” o acesso dos gestores e profissionais de saúde e da população aos dados. “Nós temos a intenção de que a plataforma seja liberada amanhã [hoje], a menos que haja algum problema técnico que nos impeça de operacionalizar”, disse. Segundo o secretário, não há intenção, por parte do Ministério da Saúde, em recontar o número de casos e mortes.

Confusão

A sequência de desinformações foi definida como “confusão” pelo diretor executivo do Programa de Emergências em Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), Michael Ryan. Para ele, a divulgação de dados coerentes e transparentes por parte do governo brasileiro é uma premissa necessária para o enfrentamento ao novo coronavírus no Brasil. “Confiamos que qualquer confusão atual possa ser resolvida e que o governo brasileiro e os estados possam continuar proporcionando dados de forma coerente, transparente para seus próprios cidadãos para que essa pandemia possa chegar ao fim o mais cedo possível”, disse, ontem, em coletiva.

Para o coordenador de Pesquisa da Transparência Internacional Brasil, Guilherme France, o posicionamento do governo federal “coloca, mais uma vez, em xeque a credibilidade do Brasil perante a comunidade internacional.”

O Presidente do Senado, Davi (DEM-AP), afirmou que a comissão mista do Congresso criada para acompanhar a crise do novo coronavírus usará os dados fornecidos diretamente pelas secretarias. “É urgente resgatar a credibilidade das estatísticas. Um ministério que tortura números cria um mundo paralelo para não enfrentar a realidade dos fatos”, criticou, ainda, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Entenda a polêmica sobre a atualização da covid-19 no país

ATRASO PARA DIVULGAR DADOS

GOVERNO

Após o presidente Jair Bolsonaro afirmar que os dados da covid-19 seriam divulgados mais tarde — "Acabou matéria do Jornal Nacional" —, o Ministério da Saúde anuncia que a atualização precisa "passar por processo (de análise) completo."

ESPECIALISTAS E AUTORIDADES CONTRÁRIOS

Gilmar Mendes, ministro do STF, critica as novas restrições impostas pelo governo: "Na pandemia, a divulgação de dados oficiais envolve, além do dever de prestar contas, uma questão de saúde pública."

OMISSÃO DO MONTANTE DE CASOS E MORTES

 GOVERNO

Segundo o Ministério da Saúde, "Na divulgação, puramente, do acúmulo de casos, como vinha sendo feito até o momento, é muito difícil verificar as mudanças dos cenários regionais, estaduais e municipais. O dado acumulado pode indicar uma grande quantidade de casos em localidades que já estão em outra fase da curva epidemiológica. Observa-se que grande parcela das capitais e regiões metropolitanas que foram mais impactadas já está na descendente da curva de percentual de ocupação de UTIs e óbitos por covid-19."

ESPECIALISTAS E AUTORIDADES CONTRÁRIOS

Guilherme France, coordenador de Pesquisa da Transparência Internacional Brasil, critica a manobra do governo: "Ao omitir dados e atrasar, por motivos políticos, a publicação de informações fundamentais para o planejamento de ações de enfrentamento à covid-19, o presidente coloca em risco a vida de milhares de brasileiros. Vai também contra o princípio básico da transparência, consumado na Lei de Acesso à Informação, e contra uma série de decisões do STF que exige que este tipo de decisão seja tomada em função de critérios técnicos e científicos."

RETIRADA DO SITE DO AR E OCULTAÇÃO DE DADOS ANTES DISPONÍVEIS

GOVERNO

Ministério da Saúde alega que busca dar mais clareza aos dados: "A proposta é realizar readequações para proporcionar uma informação sobre o cenário atual com uma abordagem técnica, porém mais simples, e de fácil entendimento e acesso à população em geral. Uma nova plataforma interativa será lançada nesta semana."

ESPECIALISTAS E AUTORIDADES CONTRÁRIOS

Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, rebate a nova política: "Parece que o que estão querendo fazer é uma grande cirurgia nos números. Isso causará um enorme problema para o abastecimento da rede de saúde, um problema de notificação compulsória da doença, um enorme problema de planejamento de ações que são necessárias e são baseadas nos números."

RECONTAGEM DE MORTOS

GOVERNO

O empresário Carlos Wizard, convidado para comandar a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos da pasta, põe em dúvida os dados oficiais: "Temos uma equipe de inteligência no ministério. Essa equipe encontrou indícios de que alguns municípios e estados estão inflacionando os dados para receber benefícios federais, isso é lamentável." No domingo, Wizard saiu do governo.

ESPECIALISTAS E AUTORIDADES CONTRÁRIOS

Alberto Beltrame, presidente do Conass, rebateu as declarações de Wizard: "Além de revelar sua profunda ignorância sobre o tema, [Carlos Wizard] insulta a memória de todas aquelas vítimas indefesas desta terrível pandemia e suas famílias. A tentativa autoritária, insensível, desumana e antiética de dar invisibilidade aos mortos pela covid-19 não prosperará".

AMEAÇA DE ROMPIMENTO COM OMS

GOVERNO

Em mais um ataque à OMS e à ciência, Jair Bolsonaro promete seguir os passos de Trump: "Os Estados Unidos saíram. A gente estuda, no futuro: ou a OMS trabalha sem ideologia ou nós vamos estar fora também. Não precisamos de gente lá de fora dando palpite na saúde aqui dentro."

ESPECIALISTAS E AUTORIDADES CONTRÁRIOS

Michael Ryan, diretor executivo da OMS, diz confiar na ciência e na medicina brasileira: “Continuaremos apoiando os brasileiros na luta contra a covid-19. Ao mesmo tempo, é muito importante (a transmissão de) mensagens transparentes, a partir de informações coerentes, para que possamos confiar nos nossos parceiros.” 

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MP do TCU pede fim das pedaladas sanitária

Vicente Nunes

09/06/2020

 

 

O procurador do Ministério Público no Tribunal de Contas da União (TCU), Júlio Marcelo de Oliveira, entrou com representação junto à Corte para que seja expedida medida cautelar exigindo que o Ministério da Saúde restabeleça a divulgação de dados sobre infectados e mortos pelo novo coronavírus.

Oliveira ressalta que as pedaladas sanitárias do governo ferem todas as leis que preveem a transparência de informações públicas em benefício da população. Diz ele: “A política de dados abertos definidas no art. 1º do Decreto nº 8.777, de 2016, tem por objetivo, dentre outros, aprimorar a cultura de transparência pública (inciso II)” e “franquear aos cidadãos o acesso, de forma aberta, aos dados produzidos ou acumulados pelo Poder Executivo federal (inciso III)”.

A mesma legislação prevê ainda, por meio da transparência dos dados: “facilitar o intercâmbio de dados entre órgãos e entidades da administração pública federal e as diferentes esferas da Federação (inciso IV)”; além de “fomentar o controle social e o desenvolvimento de novas tecnologias destinadas à construção de ambiente de gestão pública participativa e democrática e à melhor oferta de serviços públicos para o cidadão (inciso V)”.

Não é só. A transparência dos dados permite ainda: “fomentar a pesquisa científica de base empírica sobre a gestão pública (inciso VI)” e “promover o compartilhamento de recursos de tecnologia da informação, de maneira a evitar a duplicidade de ações e o desperdício de recursos na disseminação de dados e informações (inciso VIII)”.

Bolsonaro

Segundo o procurador, “na última quinta-feira (4), a sociedade brasileira foi surpreendida com mudanças no horário e no conteúdo divulgado sobre os casos da covid-19 pelo Ministério da Saúde. Ele ressalta que, conforme divulgado pelo Correio Braziliense, a ordem teria partido da Presidência da República, gerando diversas críticas de autoridades dos demais Poderes e órgãos autônomos. A alteração dos dados divulgados diariamente pelo Ministério da Saúde foi oficializada no último sábado (6), após o sistema ficar fora do ar por quase 20 horas.

No processo, o procurador ressalta que a expedição de medida cautelar pelo TCU obrigará o Ministério da Saúde a restabelecer, “imediatamente, a transparência ativa do Portal Covid-19”, no sentido de “assegurar a plena visibilidade das informações divulgadas diariamente (referentes às últimas 24 horas e acumuladas até a data/hora da divulgação), que contemple, pelo menos, os dados relativos a óbitos, novos casos e taxa de incidência por referencial de habitantes das cidades, de forma segregada por estado e respectivos municípios”.