Título: Invadir para depois legalizar
Autor: Tahan, Lilian; Campos, Ana Maria
Fonte: Correio Braziliense, 14/12/2012, Cidades, p. 22

Era 17 de setembro de 2001. Joaquim Roriz desceu dos céus, a bordo do helicóptero oficial. Ao pousar, o governador — então em seu terceiro mandato — levantou poeira da invasão de barracos de madeirite, onde a terra se misturava à pressão por moradia e ao oportunismo político. Em uma aparição messiânica, Roriz falou o que as pessoas dali queriam ouvir. Prometeu que resolveria a situação dos invasores. Desafiou com atitude a Justiça que determinava na época a desocupação do lugar com a derrubada das casas. “É uma grande injustiça o que estão fazendo com meu povo (…) Os barracos serão reerguidos, o povo aqui ficará e, caso seja preciso, eu desapropriarei a terra”, vociferava.

Na época, eram 3,5 mil pessoas. Onze anos depois, a invasão virou cidade, entrou para as estatísticas oficiais e segue como um dos nós jurídicos mais complexos sob o ponto de vista da regularização. Não há uma só casa entre as 14.016 moradias de 56 mil pessoas que tenha escritura definitiva registrada em cartório, segundo dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios do Distrito Federal de 2011, realizada pela Companhia de Planejamento do DF (Codeplan).

Os primeiros a montar os seus barracos no Itapoã foram encorajados por líderes políticos, como o então deputado distrital José Edmar, denunciado em 2003 pelo Ministério Público Federal por grilagem de terras em áreas carentes do Condomínio Porto Rico, na região de Santa Maria. As famílias do Itapoã receberam a garantia de que não seriam retiradas de lá. Compromisso esse firmado com uma terra pública pertencente à União. Itapoã surgiu como um transbordo da região administrativa do Paranoá, que teve dificuldades de expansão por estar cercada de parques. O lugar enfrenta um dos mais graves conflitos fundiários remanescentes da época da desapropriação das fazendas goianas, que originaram o DF.

O caso de Itapoã, feito à revelia da Justiça, é mais um exemplo de que no Distrito Federal invadir sempre foi considerado um bom negócio. Quem ocupou terrenos demarcados por grileiros no Itapoã caminha para virar dono da terra. Em 6 de novembro deste ano, políticos — agora não sobre a terra, mas dentro do Palácio do Buriti — oficializaram a doação de 200 hectares de terras da União ao GDF, como meio de regularizar a ocupação. Mais do que isso: prometem construir agora 10,4 mil novas unidades para baixa renda.

Participaram da cerimônia no Palácio do Buriti a ministra do Planejamento, Miriam Belchior; o governador Agnelo Queiroz (PT); o vice-governador Tadeu Filippelli (PMDB); entre outras autoridades. “É uma ironia do destino. Roriz invadiu e o governo do PT precisa agora regularizar”, constata o secretário de Habitação, Geraldo Magela, que também esteve no evento. Ele foi um ferrenho adversário do ex-governador na campanha eleitoral de 2002, quando o discurso da ocupação irregular tornou a campanha explosiva. Promessa de campanha

Em casa de rico, as promessas também são bem-vindas. Na campanha de 1998, quando concorria com o então petista Cristovam Buarque, Roriz esteve no Condomínio Solar de Brasília, vizinho à propriedade do tricampeão mundial de Fórmula 1 Nelson Piquet, entre o Lago Sul e o Jardim Botânico, área privilegiada da capital. Na tentativa de pavimentar o retorno ao governo, depois de quatro anos longe do poder, Roriz esteve no local e prometeu a um grupo de invasores de classes média e alta que faria a regularização.

Depois de eleito, determinou uma operação de retirada dos moradores e a derrubada das casas de luxo com base em um parecer jurídico da Procuradoria do DF, que apontou a área como pública. A Justiça, no entanto, impediu a ação de desocupação do loteamento. O juiz que na época esteve à frente do caso, hoje desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), deu um depoimento inédito ao Correio sobre a decisão que tomou. Conta que, ao impedir a operação policial, precisou levar em conta a promessa de Roriz feita aos moradores meses antes na campanha eleitoral (leia Depoimento).

Em setembro deste ano, o juiz da Vara de Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do DF, Carlos Divino Rodrigues, decidiu que a área do Condomínio Solar de Brasília pertence à Terracap, portanto é pública. Mais um fato consumado para o qual agora se busca uma solução. Na época da visita de Roriz, os terrenos estavam sendo vendidos por até R$ 20 mil. Hoje, estão estimados em R$ 500 mil.

DEPOIMENTO

Desembargador Roberval Belinati, do TJDFT

“Em 1998, como juiz titular da 4ª Vara da Fazenda Pública do DF, trabalhei em uma ação de manutenção de posse ajuizada pela Associação dos Moradores do Condomínio Solar de Brasília contra o DF. Determinei a realização de inspeção judicial no local e constatei pessoalmente que 299 casas estavam sendo construídas e que a área estava toda dividida em lotes de 500 e mil metros quadrados. Muitos lotes estavam sendo vendidos por R$ 15 mil ou R$ 20 mil.

Alguns meses após o ajuizamento da ação, Joaquim Roriz, candidato a governador do DF, visitou o condomínio e prometeu, em caloroso discurso, que, se fosse eleito, promoveria a regularização do empreendimento. Com o governador eleito, uma operação de demolição foi preparada pelo Governo do DF, mobilizando dezenas de policiais civis e militares, servidores públicos, caminhões e tratores.

Participava de um encontro de orações na igreja, com minha família, quando, na saída do evento, fui interpelado por dezenas de pessoas. Informaram-me que, no dia seguinte, às 8h, seria realizada ‘uma operação de guerra’ pelo governo do DF para demolir as casas do condomínio. Alertaram-me que os condôminos, em torno de 300 pessoas, pretendiam resistir à ação de demolição e poderiam até usar armas de fogo, revólveres ou espingardas, enxadões, foices e pedaços de pau contra os policiais e os servidores do GDF. Elas afirmaram que estavam dispostas a morrer para defender as suas casas. Percebi que a situação era gravíssima e que os condôminos estavam revoltados, sobretudo com as promessas políticas que não tinham sido cumpridas quanto à regularização do condomínio.

Deferi o pedido cautelar que eles fizeram, determinando a suspensão da operação de demolição. Determinei ao GDF que aguardasse o julgamento de mérito da ação possessória e o esclarecimento sobre a titularidade da área ocupada. Várias pessoas me disseram depois que a minha decisão, ao determinar a suspensão da demolição das casas, foi a mais acertada, porque impediu que uma tragédia acontecesse no local, com a morte de muitas pessoas. Algum tempo depois desses fatos, encontrei o então governador em um evento e na ocasião falei com ele sobre a questão fundiária do DF.

Disse-lhe que a solução para a ocupação irregular do solo era a venda dos lotes ocupados em área pública. Assinalei que o governo era o maior responsável pelas irregularidades fundiárias, porque era conivente com a situação. Levava transporte para as áreas invadidas, asfalto, água, luz e telefone e, depois, como poderia promover a demolição das casas edificadas?”