O Estado de São Paulo, n.46214, 28/04/2020. Espaço Aberto, p.A2

 

Moro, as borboletas, as cobras e as lagartixas

Fernão Lara Mesquita

28/04/2020

 

 

A maldita família pediu e aquela gente que não pode sair à rua alegremente concedeu a este país amaldiçoado mais uma crise política em cima de uma pandemia.

Anime-se, vamos lá! Desgraça pouca é bobagem...

É mais uma daquelas disputas em que nós somos só o prêmio. A novela da demissão de Sergio Moro não iria tão longe quanto vai chegar se todos estivéssemos no mesmo barco e fôssemos pagar o mesmo preço pelo que vem por aí. Mas como a privilegiatura vai assistir a tudo de camarote sem a perda de um privilégio sequer – que dirá do sacrossanto emprego pago por alguém que não tem um – lá vai o povo brasileiro, varejado dos tiros da pandemia, de novo para o ralo do “processo político” pelas mãos das criaturas dos pântanos do Legislativo e do Judiciário.

O cálculo de custo/benefício não entra um minuto em consideração. Se entrasse não passávamos do primeiro capítulo, pois não vai mudar exatamente nada, como nunca mudou exatamente nada, o giro completo na roda da ideologia que deu o Brasil entre o regime militar e hoje porque, como pano de fundo, temos sempre o mesmíssimo frankenstein institucional, acrescentado de mais e mais membros e órgãos costurados fora de lugar, que mantém o circo mambembe da política macunaímica (esta dos heróis sem nenhum caráter) dando sessões: aos mesmos de sempre caberá só ser pagos; aos mesmos de sempre caberá só pagar.

O Brasil é um país esquisito. Aqui não há política, só há luta pelo poder, porque “de como submeter o governo ao povo”, vulgo democracia, ninguém – dos plenários às academias, das redações à “lives”, da extrema direita à extrema esquerda – quer nem ouvir falar. A antidemocracia real, institucionalizada e constitucionalizada, odiosa e anacrônica, simplesmente não toca a sensibilidade verde-amarela. Foro, salário, aposentadoria, acesso à saúde, direitos e deveres... até a taxa de juros é diferente para os brasileiros de primeira e de segunda classe por força de lei! Tem voto que vale 70 vezes o do vizinho. É absolutamente impossível dizer quem representa quem no sistema eleitoral da “democracia representativa” macunaímica. Largado o voto na urna, “as instituições” draconianamente passam a “funcionar”... só para quem as desenha e redesenha a gosto.

O Poder é absolutamente blindado contra o povo, mas ai de quem “falar contra a democracia” que não temos. Vem o mundo abaixo porque na “democracia de papo”, sim, nós exigimos uma pureza saxônica. Velhos hábitos! Desde os tempos da Inquisição frita, aqui, quem peca por pensamentos e por palavras. Quem peca por obras não paga nunca. O favelão que arda, portanto, nessa fogueira de vaidades.

Mas vamos ao cadáver do dia...

Bolsonaro está voltando às origens. Na verdade, nunca esteve do lado de cá. Nós é que fizemos dele o que não era por absoluta falta de alternativa em mais uma eleição em que o povo, como sempre a anos-luz de distância da oferta eleitoral (im)posta à mesa, vinha em carne viva de um período de abuso extremo. Alegria de pobre. Bolsonaro não rouba fora da lei e, vá lá, só deixa roubar aos muito seus. Mas, até por força do hábito, sempre fez o que pôde para que continuemos eternamente a ser roubados com a lei. Foi a luta das reformas contra o privilégio que Paulo Guedes sempre perdeu para ele.

Mesmo assim não tem perdão. Balançou pro nosso lado o traíra! E depois, vindo da periferia da privilegiatura, nem fala a língua da corte. Tem a insegurança pesporrenta de quem se sabe muito acima do “seu devido lugar”. Sim, tem luta de classes dentro da privilegiatura! É a consciência da própria “burguesia” que o faz hipersuscetível como rei...

E Sergio Moro? As instituições que enquanto “funcionarem” nos manterão atolados no brejo é o limite que também ele se impõe. Sai sem nada no bolso, como não se vê no Brasil Oficial desde nunca, mas não trai a classe. Não se limitou a romper com o que discordava. Cuidou de telegrafar, passo a passo, nas entrelinhas, todo o roteiro técnico que o procurador Aras, em coisa de minutos, reescreveu no processo que vai jogar o Brasil Real de volta nas garras das criaturas do pântano.

Continua por nascer, portanto, o herói da democracia brasileira. Ele, que conhece melhor que ninguém a classe de bandido com que estamos lidando, tratou essencialmente de construir o seu cacife eleitoral.

De resto é não desanimar. O fato de mais da metade do País ter feito uma aposta numa rota de fuga ao cativeiro e perdido não torna melhores os que agora exigem a volta do favelão ao tronco. Nem a mais irracional cegueira seletiva de quem, no desespero, insiste no mito é capaz de transformar em virtude seja a roubalheira em si, sejam os capitães do mato dos ladrões de hospitais. Nada transformará em borboletas da democracia as cobras e lagartixas rasteiras que tomam a sua parte no ouro sujo de sangue do favelão nacional atiçando o Estado contra o povo, ou montando e remontando chicanas jurídicas e legislativas gosmentas, para garantir que não cesse nunca o maior e mais covarde assalto a uma população miserável, de pés e mãos atados, jamais perpetrado na face da Terra.

JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM