Título: Enigma chavista
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 06/01/2013, Mundo, p. 16

Especialistas avaliam que a Revolução Bolivariana criada pelo presidente nos últimos 14 anos vai sobreviver à eventual morte de seu idealizador, mas exigirá mudanças profundas. Carisma e polarização entre o povo e as elites são os principais legados do movimento

Quando Hugo Chávez ascendeu ao poder, em 1999, José Portela tinha 17 anos. “Eu era muito pobre. Nunca viajava, não podia estudar. Tudo o que eu não podia fazer, agora faço”, conta ao Correio o morador de Caracas, hoje um geólogo, mestre em geoquímica e estudante de engenharia de telecomunicações. Ao analisar os impactos da Revolução Bolivariana sobre sua vida e sobre a de milhões de venezuelanos, José jura que morreria pelo presidente e pela ideologia socialista implantada no país. “Pelo futuro dos meus filhos, netos e bisnetos, eu o faria. Temos que defender esse processo, o qual querem nos roubar”, afirma. De acordo com ele, o chavismo é “união, ajuda ao necessitado e solidariedade”. O conceito se incorpora à própria figura de Chávez, criando um culto à personalidade, cujo pilar é a revolução. Com o presidente possivelmente à beira da morte, levanta-se a discussão sobre a possível efemeridade desses ideais forjados na figura do conquistador Simón Bolívar.

O chavismo e a Revolução Bolivariana sobreviverão a uma possível morte de Chávez? Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidad Simón Bolívar (Caracas), Miguel Ángel Martínez Meucci acredita que sim, mas explica que o chavismo precisará de mudanças profundas. “Se Chávez não puder seguir governando, um novo jogo político começará, além dos elementos de continuísmo que possam existir. Será difícil recuperar a estabilidade, depois da morte de uma figura que minimizou as instituições e concentrou todo o poder”, comenta, por e-mail.

De acordo com Meucci, o movimento chavista teve seu eixo no próprio Chávez, com os seguidores do Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV) interpretando as palavras do presidente sempre “ao pé da letra” e lhe jurando obediência irrestrita. O especialista admite que a ideologia bolivariana impactou fortemente a sociedade venezuelana. Além de pregar uma polarização entre o povo e as elites — típica do populismo latino-americano —, ela postula a repartição dos royalties do petróleo e se beneficia do carisma e da capacidade de comunicação de Chávez. “Toda essa mensagem tende a perder força em outro líder. Ninguém poderá se manter vivo politicamente por muito tempo se não tiver méritos próprios”, observa.

Para José Portela, as façanhas do atual governo serão eternas. “Chávez não morrerá jamais. Ele permanecerá sempre vivo. A Venezuela, agora, é revolucionária”, celebra. “E a revolução venezuelana, única no mundo, vai perdurar para sempre. Buscamos a eliminação da pobreza.” O especialista venezuelano Miguel Tinker-Salas, historiador e cientista político do Pomona College (em Claremont, EUA), não tem dúvidas de que a Venezuela não seja a mesma. “Com ou sem Chávez, não existe regresso ao passado. As eleições regionais de 16 de dezembro, quando o PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela, governista) fez 20 dos 23 governadores, confirmam que existe chavismo sem Chávez”, observa.

O legado de Chávez é profundo e sua presidência marca um rito na história do país, sustenta Tinker-Salas. “O governo de Chávez ressalta a existência de duas Venezuelas: uma que havia se beneficiado do petróleo e outra que vivia à margem dessa riqueza e agora reclama sua participação”, explica. Ele aposta que essa última Venezuela não vai desaparecer e que Chávez forçou os futuros governos a atenderem a essas necessidades e a reconciliarem as diferenças.

Sobrevida

Cientista político e professor egresso da Universidad Simón Bolívar, Tony De Viveiros diz que o chavismo sem Chávez é bastante viável e teria uma sobrevida longa. “A liderança de Chávez vai além do carisma e tem características que a aproximam de um movimento religioso, já que muitas das realizações em 14 anos de governo têm sido aceitas como dogmas indiscutíveis”, observa. De acordo com De Viveiros, o fato de Nicolás Maduro, vice-presidente, e Diosdado Cabello, presidente da Assembleia Nacional, terem viajado a Havana para expressar solidariedade a Chávez indica uma tentativa de manter a chama da revolução viva, mesmo sem a presença física de seu comandante.

“Fala-se de um chavismo sem Chávez, mas acho isso difícil”, diz, em contraposição, o opositor Henderson Hernández, estudante de contabilidade da Universidad Central de Venezuela (Caracas). Mesmo contrário ao governo, o venezuelano de 30 anos diz ter os pés no chão. E vê no chefe de Estado um personagem capaz de se conectar ao povo. “Não existe uma figura com tamanho carisma dentro das fileiras do chavismo. A morte de Chávez provocaria uma ruptura da Revolução Bolivariana, ante problemas internos”, comenta Henderson. Ele prevê que o PSUV desapareceria em cinco anos e explica que o processo revolucionário chavista não se incutiu nos jovens, que sonham com oportunidades de trabalho e com uma economia melhor.

Semente do socialismo

A Revolução Bolivariana foi um termo criado pelo presidente Hugo Chávez para designar as mudanças políticas, econômicas e sociais iniciadas em fevereiro de 1999, quando ascendeu ao poder. O movimento se baseia no ideário do libertador Simón Bolívar e tem por objetivo fundar as bases de um novo socialismo. Os principais componentes da revolução são as 18 missões bolivarianas — programas sociais que levam saúde, educação e alimentos a pessoas carentes — e os círculos bolivarianos, organizações de base criadas para difundir a ideologia chavista que contam com 2,3 milhões de integrantes. Outro pilar importante é a busca pela integração latino-americana.