Correio braziliense, n. 20848 , 21/06/2020. Política, p.6

 

O protagonismo do Poder Judiciário

Sarah Teófilo

Luiz Calcagno

21/06/2020

 

 

ESPLANADA » Ao investir no combate indireto contra as instituições, Bolsonaro uniu o Supremo e vem perdendo o controle da narrativa enquanto aliados se complicam.  

O Brasil está cada vez mais nas mãos da Justiça. No tabuleiro da República, o presidente Jair Bolsonaro, pela primeira vez, sentiu sobre si a ameaça de um xeque-mate. O movimento veio do Poder Judiciário. No xadrez, a principal peça do jogo, o rei, está em xeque quando ameaçado por peças adversárias. É preciso, então, mudar de posição ou se proteger sacrificando outra peça. E, quando o rei já não pode mais se mover, é xeque-mate e o inimigo vence.

Quem evocou essa metáfora do esporte foi o filho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), ao se queixar da prisão do ex-assessor, Fabrício Queiroz, na última semana, na casa do advogado da família, em Atibaia (SP). Ele disse que se tratava de uma tentativa de atingir o pai, já sob o olhar de outras duas instâncias judiciais.

Bolsonaro se vê ameaçado por dois inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF) e oito processos no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Outro, na Justiça do Rio de Janeiro, mira Flávio, mas também pode trazer danos políticos ao presidente. No entanto, para especialistas, o adversário de Bolsonaro é ele próprio, porque ele investiu no combate indireto com as instituições e conseguiu unir as 11 cabeças do STF contra o belicismo presidencial. O resultado é que, ao menos por enquanto, o chefe do Executivo perdeu o controle da narrativa e é a Suprema Corte quem dá as cartas. Estudiosos acreditam ser difícil, porém, calcular os resultados do confronto.

Os inquéritos que tramitam no Supremo atingem apoiadores e políticos ligados ao presidente. Um deles é o inquérito das fake news, que investiga ameaças, ofensas e informações falsas contra ministros da Corte e que pesou, inclusive, na demissão do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub.

O segundo processo trata da investigação sobre a organização e o financiamento de atos antidemocráticos realizados no país nos últimos meses, pedindo o fechamento do Supremo e do Congresso Nacional. Na última semana, a militante de extrema direita Sara Fernanda Giromini, do grupo 300 do Brasil, foi presa, assim como outras três pessoas do grupo. Além disso, o ministro Alexandre de Moraes determinou a quebra de sigilo bancário de 10 deputados federais e um senador bolsonarista no âmbito desse processo.

Sob pressão

O professor de direito e analista político Melillo Dinis prevê um cenário de acirramento como resultado da necessidade que Bolsonaro tem de criar conflitos para manter a popularidade, que se concentra em uma parcela mais radical da população. Para ele, o movimento do STF é necessário. “Olhando o todo, uma das instituições que  construiram este muro de contenção é o Judiciário. É um sinal de maturidade democrática. Apesar de haver críticas ao Supremo, parece-me que, em condições latino-americanas, é muito importante que instituições assumam esse papel de defender a Constituição e a democracia”, avalia.

Dinis não acredita que o país esteja nas mãos da Justiça. “O Supremo tem papel relevante na democracia brasileira, mas não governa. Estabelece limites dentro do marco constitucional”, afirma. No âmbito dos outros Poderes, ele enxerga fragilidade, com um Congresso Nacional que, em 30 anos, “não regulamentou nem metade do que deveria”. “Quando há esse vácuo, outros Poderes acabam ocupando alguns espaços”, opina.

Ricardo Ismael, cientista político e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), reforça que o STF tem sido o “contraponto” ao presidente, principalmente, em razão de algumas manifestações autoritárias, cumprindo um papel que, de alguma maneira, o Congresso e as lideranças políticas não conseguiriam. “O Judiciário passou a tentar colocar limites no presidente e no governo”, afirma. Para ele, o exercício de “frear” o chefe do Executivo fica claro na decisão sobre a constitucionalidade do inquérito das fake news, uma vez que o país vive uma crise de renovação de lideranças, o que gera uma dificuldade de se contrapor. “Bolsonaro conseguiu uma proeza: unir o Supremo contra ele”, destaca.

Desequilíbrio

Para a constitucionalista e mestre em direito público administrativo pela Fundação Getulio Vargas (FGV) Vera Chemim, o Supremo passou a ocupar espaços que eram do Executivo, por conta da fragilidade institucional e individual de Bolsonaro, e do Legislativo. “Queiramos ou não, o STF está extrapolando das atribuições que lhe são típicas e interferindo na seara do Poder Executivo, o que não poderia acontecer, de acordo com os dispositivos constitucionais. Mas, o chefe do Executivo está agindo de forma completamente descontrolada, não está se fazendo respeitar enquanto presidente da República. Tem trocado ministros por problemas pessoais em um modelo patrimonialista da administração pública que remonta-se aos anos 1930”, aponta.

A especialista considera que é possível ver um viés político nas ações dos ministros, ainda que de modo sutil – embora ela não acredite que se trate de ativismo judicial. “Temos, sim, que afirmar que, no momento atual, grande parte das questões relevantes, incluindo a conjuntura sanitária, está sendo comandada pelo Supremo. É lamentável, pois demonstra a grave instabilidade política que o país está vivendo”, ressalta.

Frase

"O chefe do Executivo está agindo de forma completamente descontrolada, não está se fazendo respeitar enquanto presidente da República”

Vera Chemim, constitucionalista e professora da FGV

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Encruzilhada de processos

Luiz Calcagno

Sarah Teófilo

21/06/2020

 

 

A situação do presidente Jair Bolsonaro promete ficar ainda mais complicada quando os processos no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se convergirem. Ele precisará resolver, o quando antes, a crise com o STF e apagar os incêndios políticos antes do fim da pandemia de coronavírus, ou enfrentará, ao mesmo tempo, instabilidade política e social, uma severa crise econômica, enquanto se embaraça em uma série de julgamentos do TSE por suspeita de uso de financiamento empresarial para o disparo em massa de mensagem e difusão de informações falsas (fake news) durante a campanha de 2018.

No último dia 12, o ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Og Fernandes decidiu pelo compartilhamento de provas do inquérito das fake news com as ações que estão no TSE sobre cassação da chapa do presidente e do vice, Hamilton Mourão (PRTB), podendo gerar a perda de mandato de ambos. A decisão de Fernandes dará mais robustez às ações no TSE. Essa bomba-relógio da conjuntura política está armada, e o alarme pode tocar próximo das eleições municipais, de acordo com o doutor em direito do estado pela Universidade de São Paulo (USP), advogado, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político e integrante da comissão de direito eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo, Renato Ribeiro.

Caso o presidente tenha a chapa cassada, será necessário convocar um novo pleito junto com as eleições municipais. E há forte possibilidade de que isso ocorra, por razões econômicas, junto com a disputa de prefeitos e vereadores, que tem grandes chances de serem transferidas para novembro ou dezembro, segundo Ribeiro. Se o pleito for anulado com cassação da chapa vencedora nos dois primeiros anos do mandato, não há eleição indireta.

Na avaliação de Ribeiro, as provas contra o presidente são robustas. “O chão de Bolsonaro está diminuindo. As provas estão se robustecendo ainda mais. E o argumento de que a divulgação massiva ocorreu pela vontade do eleitor e que ele que não poderia controlar é cada vez mais frágil. Se tem recurso empresarial e um engenho complexo, não é manifestação do eleitor”, afirma.

Cerco fechando

Os ministros do Supremo decidiram, na última semana, pela continuidade do inquérito das fake news. O placar de 10 a 1 era previsto e os resultados das investigações podem atingir diretamente apoiadores e pessoas ligadas ao presidente. Isso significa que o inquérito do qual Alexandre de Moraes é o relator continuará produzindo provas que poderão abastecer as ações no TSE.

Ao todo, estão no TSE oito Ações de Investigação Judicial Eleitoral (Aijes) sobre a chapa eleita em 2018. A metade apura irregularidades nos disparos de mensagens em massa pelo aplicativo WhatsApp. Luiz Eduardo Peccinin, especialista em direito eleitoral e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), afirma que, mesmo sem saber o conteúdo do inquérito das fake news, é possível observar uma correlação entre a investigação e as ações no TSE, principalmente no quesito financiamento.

Vale lembrar que, com a quebra de sigilo fiscal determinada por Moraes contra empresários suspeitos de financiarem grupos que divulgaram informações falsas contra os magistrados do STF, no âmbito do inquérito das fake news, os dados abarcarão o período eleitoral.

Peccinin, que é mestre em direito do Estado, pontua que as investigações observaram uma rede muito mais complexa do que apenas disparo de informações falsas contra os ministros. “Não é apenas por blogs e sites. Tem financiamento empresarial e aparelhamento por deputados e senadores. Os fatos comunicam-se. Verifica-se que essa organização criminosa opera desde 2018 com objetivo de eleger Bolsonaro e continua operando”, afirma. 

As consequências, para ele, além das eleitorais, com a cassação da chapa presidencial de 2018, são criminais, pela Lei de Segurança Nacional, e também na esfera cível, com indenização de vítimas, além da responsabilidade política na Câmara e no Senado em relação aos parlamentares envolvidos.