Correio braziliense, n. 20848 , 21/06/2020. Brasil, p.8

 

Erros farão pandemia durar mais

Bruna Lima

Maria Eduarda Cardim

21/06/2020

 

 

O relaxamento precoce da quarentena aliado aos inúmeros tropeços do governo federal no enfrentamento à covid-19 farão com que o país leve mais tempopara superar a doença. Especialistas prevê em uma das jornadas mais prolongadas do mundo

São mais de um milhão de infectados e quase 50 mil mortos. No topo do ranking dos países que mais têm casos e óbitos pelo novo coronavírus, o Brasil observa os erros e acertos no enfrentamento à covid-19 para, na anunciada etapa de estabilização, planejar uma descida do pico da doença. No entanto, a falta de coordenação e tropeços do governo federal diante do vírus até aqui devem tornar essa jornada uma das mais prolongadas no mundo. Caso a negação da doença perdure e as medidas para conter a transmissão do vírus não sejam reforçadas, a perspectiva da Organização PanAmericana da Saúde (Opas), braço da Organização Mundial da Saúde (OMS), e de estudiosos é de que a pandemia perdure. “Tudo indica que, se as medidas de mitigação recomendadas pela OMS e pela Opas não forem adotadas ou reforçadas, (a pandemia) pode durar muito mais tempo que na Europa”, avaliou o diretor do departamento de doenças transmissíveis da Opas, Marcos Espinal, na última semana. Ele ressaltou que a América Latina é vista, atualmente, como um epicentro da covid-19 e que as medidas de isolamento social devem continuar.

O diretor pontuou, ainda, que as diferenças entre as regiões atrapalham uma análise. “As comparações sempre são um pouco delicadas e não é bom fazê-las, já que são regiões completamente diferentes. A Europa, com países de mais recursos; América Latina, com suas iniquidades, países de menos recursos e cidades muito urbanizadas. É importante ter em conta todos esses aspectos antes de comparar”, destacou.

A equação que levará o país a ser uma das últimas nações da América Latina a deixar a pandemia pode ser explicada pela falta de um isolamento social eficiente somado às características do Brasil, acredita o virologista da Dasa José Eduardo Levi.“Nós vamos demorar mais para sair disso por não termos feito um lockdown como pregam as organizações, e até por ter uma população muito grande e número de suscetíveis muito grande”, avalia.

Levi indica, ainda, que o país pode virar um “patinho feio”, já que nações poderão adotar a restrição da entrada de brasileiros. “Argentina, por exemplo, fez um lockdown intenso, tem uma taxa de contaminação muito baixa, mas vai ter que manter a guarda porque é vizinha do Brasil. Acho que vamos virar um patinho feio porque vai ter muita restrição para a entrada de brasileiros em lugares que fizeram um bom lockdown”, pondera.

 Pela metade Sem conseguir controlar a disseminação do vírus, os esforços a partir do distanciamento social tiveram o efeito reduzido pela metade. “Se, por um lado, se achatou a curva, permitindo equipar o sistema de saúde, impedindo um colapso e salvando vidas, por outro, não se soube aproveitar isso para fazer um correto controle e elaborar políticas públicas, garantindo uma flexibilização segura. A consequência disso é que o Brasil terá uma das pandemias mais prolongadas no mundo”, reforça o médico sanitarista e professor da FGV Adriano Massuda.

Ele justifica que, apesar de ter um Sistema de Saúde Único (SUS) com integração da rede pública e suplementar, além de tradição de programas que obtiveram sucesso em frear outras epidemias, as taxas de contágio continuam altas e, por isso, o vírus ainda não consegue ser detido.“Isso tem uma série de consequências econômicas e sanitárias. Quanto maior a dificuldade de fazer o retorno, mais prejudicada fica a crise financeira. Do ponto de vista sanitário, enquanto essa pandemia estiver em curso, outros programas de saúde pública serão afetados, como tratamento de doenças crônicas, saúde mental, medicina preventiva”, argumenta Massuda.

O descontrole é algo que, na visão de Massuda, se não fosse o ruído interno dentro do próprio governo e o “desmonte” do SUS pela falta de investimento desde as gestões passadas, o Brasil teria capacidade de dar uma resposta ampla, ao se considerar as diversidades epidemiológicas dentro do território — e ao, mesmo tempo, coordenada e eficiente. “Tivemos um papel determinante dos estados e municípios que, com decretos e medidas locais de restrição, conseguiram conduzir a situação. Mas, os diferentes graus de impacto e de resposta são ruins no sentido de não existir um controle nacional para organizar os próximos passos na estabilização do país póspandemia.” Diretriz Mais de dois meses após prometer a entrega de uma diretriz para balizar estados e municípios na tomada de decisões de controle do novo coronavírus no Brasil, o Ministério da Saúde publicou, na última sexta, uma portaria ministerial que disserta sobre o tema. O documento “estabelece orientações gerais visando a prevenção, o controle e a mitigação da transmissão da covid-19, (...) de forma a contribuir com as ações para a retomada segura das atividades e o convívio social seguro”.

O documento foi disponibilizado em um momento no qual grande parte dos governadores e prefeitos já anunciaram os planos de flexibilização de atividades após o isolamento social. Na avaliação do pneumologista do Laboratório Exame Elie Fiss, a retomada das atividades foi precoce. “Acho que a liberação começou um pouco antes da estabilização de casos e, talvez, tenha sido um pouco precoce. Mas, só vamos saber daqui a duas semanas”, indica.

Para ele, é preciso observar de perto as liberações. “O relaxamento deve ser controlado e bem vigiado. Sempre lembrar que o relaxamento não é a liberação, tem que ser bem controlado e um grau de isolamento deve permanecer. As pessoas têm que estar conscientes disso”, pontua. Diante do aumento dos casos, uma quarentena mais rígida deve ser cogitada. “Essa retomada vai acontecer dessa maneira, entre idas e vindas, porque nós não conhecemos a história natural completa. Não conhecemos a sazonalidade do vírus e o comportamento dele”, afirma.

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Credibilidade do Brasil em xeque

Bruna Lima

Maria Eduarda Cardim

21/06/2020

 

 

Ainda que cada região passe por momentos distintos da infecção do novo coronavírus, a falta de uma resposta unificada por parte do governo federal é um dos principais motivos pelos quais o Brasil pertence ao rol de países que, para as principais academias internacionais, não tiveram uma resposta exemplar à quarentena. O Imperial College de Londres acrescentou, recentemente, uma observação nas análises brasileiras diante do desencontro de informações das últimas semanas. “A divulgação de mortes e casos no Brasil está mudando atualmente; os resultados devem ser interpretados com cautela”, diz o alerta.

A Universidade Johns Hopkins chegou a excluir o Brasil das avaliações comparativas, colocando o país ao lado da Coreia do Norte, que não divulga os dados; e da Venezuela, cujas divulgações são consideradas subestimadas por observadores internacionais.

As medidas vieram depois que o governo federal anunciou que iria recontar os casos confirmados e mudar a estratégia de divulgação, excluindo o acumulado. A ordem foi dada pelo presidente Jair Bolsonaro que, em 6 de junho, confirmou a alteração. “É para pegar o dado mais consolidado e tem que divulgar os mortos no dia”, disse. Antes, o mandatário já tinha ordenado a divulgação diária dos dados, feita na gestão Mandetta, às 17h, para o horário das 22h. Ao ser questionado sobre a mudança, o presidente disse: “Acabou matéria do Jornal Nacional.” Segurança Nacional No âmbito interno da pasta, reforços de restrições também foram impostos. Para manter em sigilo informações discutidas no primeiro escalão da pasta, servidores lotados no gabinete do ministro interino, coronel Eduardo Pazuello, foram obrigados a assinar um termo de sigilo sob a ameaça de serem enquadrados na Lei de Segurança Nacional (LSN). Além disso, todos os servidores receberam um e-mail interno alertando sobre o correto uso das redes sociais. “Quem vê seu perfil ou posts nas redes sociais, seja no WhatsApp, Facebook, Twitter e outras, está vendo, também, os comentários, fotos e informações de um agente público. As redes sociais são ferramentas muito úteis e práticas, mas devem ser usadas com cuidado”, alerta um dos pontos.

Para o coordenador de Pesquisa da Transparência Internacional Brasil, Guilherme France, o posicionamento do governo federal “coloca, mais uma vez, em xeque a credibilidade do Brasil perante a comunidade internacional” ao semear “dúvida sobre os dados divulgados pelo governo federal”.

Após a sequência de decisões polêmicas envolvendo a divulgação de informações sobre a covid-19 no Brasil, o Ministério da Saúde voltou a caminhar nos trilhos, ainda que por pressão popular, midiática e mediante decisão judicial — que, em caráter liminar, ordenou a reativação da plataforma com atualização dos dados detalhados da doença.