O Estado de São Paulo, n.46228, 12/05/2020. Política, p.A4

 

Bolsonaro queria alguém com 'afinidade', diz Valeixo

Fausto Macedo

Paulo Roberto Netto

Pepita Ortega

Patrik Camporez

Vanícius Valfré

12/05/2020

 

 

Governo em risco.  Em depoimento no inquérito que apura se houve interferência política do presidente na PF, ex-diretor-geral fala em pressão por troca de delegado no Rio sem “nenhuma razão”

Brasília. O diretor da Abin, delegado Alexandre Ramagem, ao chegar à sede da Polícia Federal para prestar depoimento

O ex-diretor-geral da Polícia Federal (PF) Maurício Valeixo disse ontem, em depoimento, que o presidente Jair Bolsonaro queria alguém com quem tivesse mais “afinidade” no comando da corporação, conforme antecipado pelo estadão.com.br. Ouvido em Curitiba, como parte do inquérito que analisa se Bolsonaro interferiu politicamente na PF, Valeixo disse que se sentia “desgastado” pela pressão do Planalto para uma troca no comando da PF no Rio. Segundo ele, não havia “nenhuma razão” que justificasse essa substituição.

O depoimento de Valeixo durou cerca de seis horas. Ele foi questionado sobre apurações em andamento que pudessem ser do interesse de Bolsonaro, como a investigação sobre o atentado a faca sofrido pelo presidente em 2018, a morte da vereadora Marielle Franco e a apuração sobre um suposto esquema de candidaturas laranja do PSL, antigo partido de Bolsonaro, em Pernambuco – Estado em que o presidente também tentou trocar o superintendente.

Bolsonaro já demonstrou insatisfação com os rumos da apuração do atentado. Seus filhos cobraram, via redes sociais, que a PF insistisse na tese de que Adélio Bispo foi financiado por algum grupo político. A investigação concluiu, porém, que o agressor agiu sozinho. O presidente não demonstrou “contrariedade” com a conclusão da PF durante reunião com os responsáveis pelo caso, afirmou Valeixo.

O delegado relatou que Moro pediu investigação que esclarecesse a citação a Bolsonaro no depoimento do porteiro do condomínio Vivenda da Barra. O funcionário disse, no fim do ano passado, que o presidente havia autorizado a entrada de suspeitos de matar Marielle no local. Ele depois se retratou.

Em relação ao inquérito das fake news, que corre no Supremo Tribunal Federal (STF) e pode atingir deputados e empresários aliados do Planalto, Valeixo disse que não teve acesso à investigação. “Nunca foi solicitado ao depoente qualquer informação, seja pelo ex-ministro (da Justiça e da Segurança Pública) Sérgio Moro ou pelo presidente da República”, aponta o depoimento. Antes de sair do governo, em 24 de abril, Moro recebeu uma mensagem de Bolsonaro com a frase “mais um motivo para a troca (do comando da PF)” e uma notícia sobre parlamentares que seriam alvo do STF.

O inquérito que apura a possível interferência de Bolsonaro na PF foi aberto a pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, logo após a demissão de Moro. Ele apura sete crimes: falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, obstrução de justiça, corrupção passiva privilegiada e denunciação caluniosa. Com o inquérito, Aras quer descobrir se Bolsonaro agiu de forma irregular ou se Moro mentiu.

Também prestaram depoimento ontem, em Brasília, o exsuperintendente da PF no Rio, Ricardo Saadi e o diretor da Abin, Alexandre Ramagem. Saadi, que deixou o cargo no fim de agosto, negou ter sofrido pressão por investigações. Questionado se credita sua saída à interferência política, disse que os motivos não lhe foram apresentados.

Troca. Ainda de acordo com o relato de Valeixo, Bolsonaro externou a vontade de trocar o diretor da PF em duas oportunidades recentemente – “uma presencialmente, outra pelo telefone”. “O presidente teria dito ao depoente que gostaria de nomear ao cargo de diretor geral alguém que tivesse maior afinidade, não apresentando nenhum tipo de problema com o depoente”, diz o relato.

Ao ser questionado se a troca na direção da corporação faria com que o presidente tivesse acesso a todas as investigações, Valeixo afirmou que não: “Seria necessária uma troca na rotina de trabalho estabelecida na PF já há muitos anos”. Na visão do delegado, não houve interferência política em seu trabalho. “Para o depoente a partir do momento em que há uma indicação com interesse sobre investigação, estaria caracterizada interferência política, o que não ocorreu em nenhum momento sobre o ponto de vista do depoente”, diz o documento com o termo do depoimento. 

'Verdade'

Jair Bolsonaro disse ontem que tem “zero” preocupação com o vídeo da reunião citada pelo exministro Sérgio Moro em depoimento à PF. “Verdade acima de tudo”, afirmou o presidente.

INQUÉRITO

• Vídeo

Está prevista para hoje a exibição da gravação da reunião ministerial citada pelo ex-ministro Sérgio Moro. No sábado, o ministro Celso de Mello, do STF, autorizou que o procurador-geral, Augusto Aras, o advogado-geral da União, José Levi do Amaral Jr., e Moro tenham acesso integral ao vídeo.

• Ministros militares

Os depoimentos dos ministros Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, e Walter Braga Netto, da Casa Civil, estão marcados para a tarde de hoje, no Palácio do Planalto.

• Delegados e deputada

Amanhã, serão ouvidos Carlos de Oliveira Sousa, ex-superintendente da PF no Rio, e Alexandre Saraiva, ex-superintendente no Amazonas, além da deputada Carla Zambelli (PSL-SP). Na quinta-feira, depõe Rodrigo Teixeira, ex-superintendente em Minas.

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Testemunho de ex-diretor da PF confirma relato de Moro

Wálter Fanganiello Maierovitch

12/05/2020

 

 

Celso de Mello tem pressa. Assim, a conclusão do inquérito proposto pelo procurador-geral, Augusto Aras, poderá ocorrer bem antes da sua aposentadoria, em novembro. Ontem, no testemunho do ex-diretor-geral da Polícia Federal Maurício Valeixo ficou, mais uma vez, clara a intenção do presidente Jair Bolsonaro de, por meio de um diretor submisso, se imiscuir – ilegalmente e com abuso de poder – na atividade da polícia judiciária federal.

Segundo Valeixo, Bolsonaro disse-lhe: “Quero um diretor-geral na Polícia Federal com mais afinidade comigo”. Esse testemunho de Valeixo confirma o relato de Moro no mesmo inquérito. E também o de Moro quando da exoneração do cargo e da função de ministro.

É importante frisar que o Judiciário e o Ministério Público são os destinatários únicos da atividade desenvolvida pelas polícias judiciárias (federal e estaduais), e uma delas diz respeito ao inquérito. Daí, ter o legislador usado a expressão polícia judiciária. Como observou o saudoso processualista Canuto Mendes de Almeida, as polícias judiciárias exercem função auxiliar ao Judiciário e ao Ministério Público. O presidente Bolsonaro não pode interferir na atuação da Polícia Federal quando em função de polícia judiciária. Bolsonaro não está constitucionalmente legitimado a obter, de maneira informal ou formal, informações estranhas ao Executivo federal.

JURISTA, PROFESSOR E DESEMBARGADOR APOSENTADO DO TJ-SP