O globo, n. 31713, 04/06/2020. Opinião, p. 2

 

Racismo é uma das causas das tensões americanas

04/06/2020

 

 

A série de manifestações antirracistas que ocupam as maiores cidades americanas já por nove dias, completados ontem, a partir do assassinato em Minneapolis do negro George Floyd por um policial branco, parece funcionar como um catalisador de problemas para além do racismo que acompanha a sociedade americana desde a sua formação. A morte de Floyd, mais uma ocorrida nos EUA da mesma da forma, está na confluência de estresses que enerva o país, e também o resto do mundo. Na terça-feira, manifestações com agenda semelhante surgiram na periferia de Paris e ontem chegaram a Londres.

A pandemia e a consequente grave crise econômica, com todas as suas consequências, se espalham e causam maiores ou menores danos a depender do nível de organização de cada país, de sua capacidade de reagir à ferocidade do Sars-CoV-2, e ao tamanho das pressões recessivas decorrentes da paralisação momentânea dos sistemas produtivos. Os Estados Unidos, além de enfrentarem o choque de uma crise polivalente, acumulam números dramáticos na Covid-19: o mais elevado de mortos (passou de 105 mil) e de contaminados (passou de 1,8 milhão). O Brasil é o segundo do ranking.

Na economia, instala-se uma inevitável recessão, com alto desemprego, e o país ainda se encontra em uma campanha eleitoral, em que o presidente Trump, em busca da reeleição, funciona como fator de agravamento das tensões, por ser identificado como simpático a grupos racistas e não se conter no disparo de tuítes e em atitudes provocativas. Na segunda, com as manifestações à sua porta na Casa Branca, Trump caminhou até a igreja de São João, contígua à residência e ao escritório do presidente americano, e lá posou com a Bíblia na mão, ato interpretado como lance de campanha para sensibilizar evangélicos brancos. Irritou clérigos, políticos e manifestantes.

Este novo assassinato de negro por agente policial ocorre não somente em uma campanha eleitoral dura, mas quando o desemprego dispara. A economia vinha sendo um trunfo do presidente. Mas a vantagem desapareceu. Há outros fatores que tensionam o país. A renda tem se concentrado. Mudanças no mercado de trabalho causadas pela revolução digital e a reordenação mundial de indústrias com a migração de parte da capacidade produtiva para a Ásia, a China principalmente, são outras questões que compõem o quadro de estresse social.

Pode ser um exagero usar para o país o bordão “não será o mesmo” depois desta crise. Mas caberá aos políticos processarem as mensagens que têm sido mandadas das ruas das maiores cidades americanas, colocadas em segundo plano por um governo com a agenda republicana ultraconservadora, de trânsito em geral difícil nos grandes centros urbanos.