Título: As confissões da Dama de Ferro
Autor: Tranches, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 29/12/2012, Mundo, p. 16

Reino Unido abre sigilo de documentos que mostram a surpresa da então premiê Margaret Thatcher com a notícia de que as forças argentinas haviam invadido o arquipélago, em 1982

Milhares de páginas de arquivos secretos do governo britânico vieram a público ontem e revelaram a então primeira-ministra, Margareth Thatcher, indignada com a invasão argentina às Ilhas Malvinas, também chamadas de Falkland, em 1982. Em correspondências confidenciais, a Dama de Ferro faz um desabafo ao então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, e diz que ele era o único que poderia compreendê-la. Os documentos, todos digitalizados e disponíveis no site do Arquivo Nacional britânico, mencionam o Brasil em pelo menos duas importantes ocasiões. Em uma delas, o então embaixador da Grã-Bretanha em Washington, Nicholas Henderson, afirma ter “evidências categóricas” de que a Líbia do ditador Muamar Kaddafi enviou “importante material de guerra” para a Argentina pelo Brasil.

Os documentos perderam o sigilo ontem após 30 anos de confidencialidade e podem ajudar a elucidar um pouco mais os bastidores do conflito desencadeado em 2 de abril de 1982. Quatro meses após o fim do conflito, em outubro daquele ano, a premiê britânica demonstrou indignação com a invasão argentina durante uma sessão de um comitê, na Casa dos Comuns, para investigar o conflito. “Eu nunca, nunca pensei que os argentinos invadiriam Falkland”, declarou Thatcher. “Foi uma ação tão estúpida. Do jeito como as coisas aconteceram, era estúpido até mesmo se pensar em fazer”, reforçou a primeira-ministra, de acordo com a transcrição de seu depoimento divulgada ontem.

Conhecida por ser dura e franca, seus sentimentos ficaram expostos em uma carta enviada a Reagan durante o conflito. Ela demonstra confiança e estreita relação com o americano. “Estou escrevendo a você em separado, porque acho que é a única pessoa que vai entender o significado do que estou tentando dizer”, afirma a então premiê. O historiador do Arquivo Nacional, Simon Demissie, ressalta que Thatcher via em Reagan um líder com quem dividia valores. “É um indicativo de como eles se entendiam e compartilhavam o mesmo tipo de liderança”, opinou Demissie, na análise divulgada pelo Arquivo Nacional.

O contato entre os dois não foi suficiente, porém, para convencê-la a fazer um acordo. Em 31 de maio de 1982, duas semanas antes do fim do conflito, Reagan ligou para Thatcher em Londres e disse que o Reino Unido tinha a “vantagem militar” e, portanto, “deveria chegar a um acordo”. A premiê, porém, foi inflexível. “O Reino Unido não perdeu vidas preciosas na batalha e enviou uma enorme força para entregar as ilhas da rainha a um grupo de contato”, diz a transcrição da conversa.

Em um dos arquivos, ligados ao escritório da primeira-ministra, o Brasil é mencionado diversas vezes nos documentos, catalogados como PREM 19/633. O governo britânico demonstrou seu descontentamento pelo fato de um avião bombardeiro Vulcan ter sido mantido no aeroporto do Galeão durante a guerra. A aeronave britânica havia sofrido uma pane hidráulica em meio a uma missão de combate. Como não conseguiu realizar o reabastecimento em voo, acabou invadindo o espaço aéreo brasileiro para não cair no mar. Ela fez um pouso de emergência no Rio e ficou retida. De um lado, os britânicos pressionavam o Brasil para devolver o Vulcan, do outro, os argentinos afirmavam que se o liberasse, o país estaria favorecendo o inimigo. Um documento do Sistema Nacional de Informações (SNI), divulgado pelo Arquivo Nacional brasileiro, revelou o embaraço diplomático, como mostrou reportagem do Jornal do Commercio em abril. Nos documentos de ontem, o Ministério das Relações Exteriores (FCO, na sigla em inglês) do Reino Unido demonstra sua preocupação e afirma estar tentando “pressionar” autoridades brasileiras sobre o tema.

Em outro momento, o então embaixador britânico Henderson afirma ter provas de que Kaddafi estaria enviando “importante material de guerra” para a Argentina pelo Brasil. “O Departamento de Estado (dos EUA) sabia dos detalhes, mas se houvesse qualquer coisa que ele pudesse fazer para exercer pressão no Brasil sobre esse tema, isso seria útil. Clark se comprometeu a olhar isso”, diz o telegrama, de número 1971, de 1º de junho de 1982, enviado pelo embaixador ao FCO, se referindo a William Clark, vice-secretário de Estado de Reagan à época.

Procurado pelo Correio, o Ministério das Relações Exteriores diz que não comentaria os documentos. Em 74 dias de conflito, 255 militares britânicos e três civis morreram. O número estimado de baixas entre os argentinos é de 650. A Argentina foi derrotada e o Reino Unido recuperou o controle das ilhas, localizadas a 500km ao leste da costa. Buenos Aires ainda reivindica a soberania sobre o arquipélago.

74 dias de batalhas

Veja os principais fatos da Guerra das Malvinas (Falklands)

2/4/1982 » À zero hora, a Argentina põe em marcha a Operação Rosário e envia navios de guerra para o arquipélago das Malvinas. Às 3h25, o governador declara estado de emergência. As forças especiais argentinas desembarcam em Mullet Creek às 4h30. Menos de duas horas depois, os três primeiros soldados argentinos são mortos. Às 8h, a principal força terrestre argentina chega a Stanley.

5/4 » Os porta-aviões britânicos Hermes e Invincible deixam Portsmouth (Reino Unido) com mais de 100 navios, em direção às Malvinas.

25/4 » South Georgia é recapturada pelos marines britânicos. A então premiê Margaret Thatcher convida a população a se regozijar. O submarino argentino Santa Fé encalha em South Georgia, depois de um ataque britânico.

2/5 » O cruzador argentino General Belgrano é naufragado pelo submarino Conqueror, fora da zona de exclusão marítima, sob a alegação de autodefesa. 368 argentinos morrem.

21/5 » Pelo menos 3 mil soldados britânicos começam a desembarcar no leste das Malvinas. Um debate aberto tem início no Conselho de Segurança da ONU.

29/5 » As forças do Reino Unido recapturam Goose Green, numa operação que deixa 17 britânicos e 250 argentinos mortos.

8/6 » Barcos britânicos são bombardeados em Fitzroy, matando mais de 50 homens.

13/6 » Os britânicos retomam posições argentinas em Tumbledown, Wireless Ridge e Mount William — 15 britânicos e 40 argentinos morrem.

14/6 » À luz do dia, as tropas argentinas partem em debandada. Thatcher informa que os inimigos se renderam. Às 21h (hora local), 9.800 soldados argentinos depõem suas armas.