O globo, n. 31713, 04/06/2020. Especial Coronavírus, p. 10

 

Entrevista - Paulo Lotufo: "Nosso tempo de epidemia ultrapassa o de outros países"

Ana Letícia Leão

04/06/2020

 

 

Para professor de Clínica Médica, a decisão de afrouxar isolamento vai agravar o crítico quadro da Covid-19 em grandes cidades

O epidemiologista e professor da Universidade de São Paulo Paulo Lotufo avalia que afrouxar as rédeas do isolamento agora vai sobrecarregar ainda mais o sistema de saúde e prejudicar, principalmente, as periferias, onde o controle do deslocamento já tem sido mais difícil. “Os maiores prejuízos são as vidas perdidas. Você passa a ter uma situação que é absurdamente terrível. Vamos ter um reflexo muito duro.”

Chegou o momento de reabrir gradualmente as atividades?

Não chegou o momento, porque temos um número de casos e de mortos em ascensão. Isso é o principal. Todos os outros lugares fora do Brasil foram reduzindo o grau de isolamento no momento em que se reduzia o número de casos. Aqui, nós não estamos nem estáveis, mas ainda vendo aumentar número de casos e mortes. Não tem lógica nenhuma o que tem sido feito pelos governadores.

Quais são, então, os maiores prejuízos com a flexibilização da quarentena para cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo?

À medida que há aumento de casos, sobrecarregam-se mais ainda os leitos de hospitais, e quem não estava sendo atendido continua sem atendimento. Vamos ter um reflexo muito duro.

Há benefícios em se flexibilizar a quarentena neste momento?

Agora, eu não vejo nenhum. Sempre achei que se deveria fazer a quarentena de forma mais radical e por menos tempo. Se nós tivéssemos feito de forma mais radical, estaríamos saindo agora para uma situação muito melhor. Nosso tempo de epidemia já ultrapassa o de outros países, e com curvas ascendentes.

É possível fazer controle da epidemia com a circulação normal de pessoas nas ruas?

Não é possível. Acho que vamos ter sérios problemas por causa do contato em alguns lugares específicos, como os mais fechados. Nos Estados Unidos, houve um aumento de casos em igrejas, por exemplo. No Brasil, os frigoríficos são um grande local de pico de casos também.

O impacto da flexibilização é maior nas periferias, onde muitos não têm como fazer isolamento ou trabalhar de casa, ou as consequências terão caráter geral?

Como o auxílio emergencial foi muito malfeito e mal distribuído, temos uma proporção grande de pessoas que não conseguiram fazer o isolamento. Com a flexibilização, vai piorar ainda mais. As pessoas que têm mais condições vão continuar fazendo isolamento, mas serão poucas. Quem vai sair é quem tem menos condição de aguentar isso aí, porque vai ter que voltar ao trabalho. Uma pessoa que trabalha em uma loja, por exemplo, vai ter que sair, pegar ônibus, metrô, andar em elevador. A chance (de contrair o vírus) vai ser maior.

Existe uma preocupação com o sistema de saúde, que está em colapso, no caso do Rio de Janeiro, ou com altas taxas de ocupação de UTIs, como em SP?

O que estão mostrando em São Paulo é que a taxa de ocupação não está aumentando, mas eu diria que não é bem assim. Está correto, não é mentira, mas não está aumentando porque o próprio governo está aumentando a disponibilidade de médicos e leitos. Então fica com uma ocupação em torno de 80%. Mas está aumentando, sim.