Título: Ou estuda ou fica vivo
Autor: Almeida, Kelly
Fonte: Correio Braziliense, 29/12/2012, Cidades, p. 21

Estudantes do ensino fundamental relatam ameaças e intimidações sofridas por grupos rivais de dois bairros de Planaltina. Assustados, alguns pais acabam obrigados a tirar os filhos da escola apenas por causa do endereço em que vivem

54 Total de homicídios registrados em Planaltina entre janeiro e setembro

A rivalidade entre gangues dos bairros Buritis II e III causa tensão e medo entre os moradores que precisam atravessar diariamente as duas áreas de Planaltina. Alguns alunos, sobretudo de duas escolas de ensino fundamental, correm riscos e sofrem ameaças por estudarem no bairro oposto ao que vivem. É comum ouvir relatos de pais que tiraram os filhos do colégio depois de intimidações feitas por grupos rivais.

Durante três anos, Flávio* frequentou o Centro de Ensino Fundamental nº 3, no Buritis II, também conhecido como Pombal. Há pouco mais de um mês, o jovem de 15 anos deixou o colégio por causa de ameaças. Ele mora no Buritis III, apelidado de Buraco Fundo. “Fui com o meu irmão a uma cachoeira. Tiramos fotos e em uma delas aparece um homem ao meu lado que o pessoal do Pombal não gosta. A foto foi para a internet e, então, comecei a sofrer ameaças”, conta o garoto.

As represálias eram diárias, especialmente, na porta da escola. “Umas oito pessoas esperavam a hora de eu ir embora e ficavam falando que eu era do outro bairro. Eu abaixava a cabeça e vinha para casa o mais rápido possível”, lembra. A mãe de Flávio o tirou da escola ao perceber que o percurso diário para atravessar os dois bairros e chegar ao CEF 3 havia se tornado perigoso. “Mesmo depois de ter feito isso, encontraram o meu filho na rua e foram tomar satisfações por ele ter tirado foto com um rival do Pombal. Deram um murro nele e, agora, ele só fica em casa”, lamenta a mulher.

Para ela, a interrupção dos estudos do filho se mostrou a única alternativa. “Andar todos os dias de casa para a escola está sendo muito perigoso. Ou ele estuda ou fica vivo. É muito triste saber que ele pode morrer indo estudar só porque vive em uma quadra onde há moradores que têm rivalidade com os da quadra onde ele estuda”, desabafa a mãe, de 53 anos. No ano passado, ela perdeu um filho de 20 anos, assassinado no caminho para o trabalho.

Risco

A situação de Flávio não é um caso isolado. Mãe de um estudante da 4ª série da Escola Classe nº 14, no Buritis III, Joana*, 33 anos, teme pela segurança do filho no ano que vem. “Ele vai para a 5ª série, e a escola mais perto é a do Pombal. Não é todo dia que posso levar e buscar os meus filhos. Então, tenho medo de deixá-los fazerem esse trajeto sozinhos”, contou. A mulher passou pela mesma preocupação há três anos, quando a filha também precisou fazer a transferência de colégio. “Senti o mesmo medo, porque sei que eles estão correndo risco. Ensinei que eles não podem falar onde moramos, pois isso é motivo para brigas”, ressaltou. “As duas escolas são excelentes, mas eu pretendo me mudar de Planaltina antes de o meu filho ser transferido para o Pombal”, acrescentou.

O medo de pais e alunos dos dois bairros de Planaltina não se reflete dentro das escolas, segundo a direção da Escola Classe 14 e do Centro de Ensino Fundamental 3. A diretora, que recebe os alunos a partir da 5ª série, ressalta que, todos os anos, as vagas são preenchidas normalmente. “Não há evasão escolar. Ao longo do ano, alguns estudantes até deixam o centro, mas o problema não é na escola, mas do lado de fora. Aqui dentro, são todos alunos, uns iguais aos outros”, defendeu Rita Cirlene Martins de Godoi, diretora do CEF 3.

Na Escola Classe 14, no entanto, o diretor confirma o receio dos pais que precisam transferir os filhos para a instituição do Pombal. “Dentro da escola, nós temos o controle, mas eles (os pais) sabem que o trajeto é perigoso. Ficam preocupados, porém acabam matriculando os filhos”, afirma André Santos. Ele ressalta ainda que a briga entre os grupos é antiga. “Há uns 20 anos, quando eu estudava, existia essa preocupação em não passar por alguns locais. Algumas pessoas não pegam nem sequer ônibus que passam pelos outros bairros”, revela.

Denúncia

O delegado-chefe da 31ª Delegacia de Polícia (Planaltina), Neto Tavares, disse que nenhuma família procurou a polícia para relatar sobre possíveis ameaças. “Se alguém se sentir ofendido ou intimidado, precisa fazer a denúncia para que possamos investigar e identificar os supostos autores”, afirma. O delegado ressalta que há o envolvimento de adolescentes na maioria dos crimes registrados na cidade. “O grande problema é que eles são apreendidos, mas em pouco tempo estão em liberdade novamente e voltam a cometer os delitos”, acrescenta Tavares.

Dados da Secretaria de Segurança Pública do DF apontam que o Distrito Federal registrou, de janeiro a setembro deste ano, 585 homicídios. Do total, 54 ocorreram em Planaltina — uma média de seis assassinatos por mês. O número fez com que a cidade ficasse em terceiro lugar entre aquelas com mais vítimas de assassinatos. Na primeira colocação, aparece Ceilândia, com 119 ocorrências. Samambaia tem 62. “Se um fim de semana tem homicídio no Pombal, no outro, provavelmente, os amigos de quem morreu querem vingar a morte e vão ao outro bairro para matar outra pessoa. Isso precisa terminar”, lamenta o diretor da Escola Classe 14, André Santos.

*Nomes fictícios a pedido dos entrevistados

Memória

Conflito histórico

Planaltina abriga cerca de 230 mil habitantes. Assim como a maior parte das cidades ao redor do Plano Piloto, a região enfrentou o crescimento desordenado. A maioria dos loteamentos começou a ser implantada a partir dos anos 1960, quando passou a receber pessoas sem condições de se fixar em Brasília. O Setor Tradicional foi ampliado e logo surgiram aVila Vicentina e o Setor Residencial Leste. Foi nos anos 1990 que se iniciou a guerra entre as gangues. Cada comunidade formou o próprio grupo, com apelidos que se confundiram com as localidades. Pombal é a Vila Buritis II, enquanto o Setor Residencial Norte se refere ao Agreste ou ao Jardim Roriz. Vila Buritis III, por exemplo, é o Buraco Fundo. No começo, a disputa era por territórios. Em pouco tempo, o tráfico de drogas começou a pautar os conflitos.

No início dos anos 1990, pelo menos 30 pessoas morreram assassinadas em dois anos. As principais desavenças hoje ocorrem entre jovens do Pombal, que brigam entre si e com moradores de bairros vizinhos. As rixas e as mortes continuaram com a chegada das novas gerações, apesar de a situação ter se acalmado no início dos anos 2000. Nessa época, quase todos os líderes das gangues acabaram presos ou mortos antes dos 30 anos.

Em 2010, as brigas territoriais se seguiram impulsionadas pelo tráfico. Elas motivaram 70% dos assassinatos acontecidos em pelo menos cinco bairros de Planaltina — juntos, reuniram mais de 60 homicídios nos últimos dois anos.