O Estado de São Paulo, n.46231, 15/05/2020. Política, p.A4

 

Bolsonaro blinda atos de gestor público na covid-19

Thiago Faria

Bianca Gomes

Camila Turtelli

João Ker

15/05/2020

 

 

Medida provisória cria ‘salvo-conduto’ por irregularidades em decisões administrativas relacionadas à pandemia; regra é vista como inconstitucional no STF e por parlamentares

Gesto. Jair Bolsonaro acena para apoiadores da rampa do Planalto; medida considerada ‘salvo-conduto’ causou polêmica

O presidente Jair Bolsonaro criou um “salvo-conduto” a gestores públicos – o que inclui ele próprio – por eventuais irregularidades em atos administrativos relacionados à pandemia do novo coronavírus, como contratações fraudulentas ou liberação de dinheiro público sem previsão legal. A medida provisória (MP), publicada na edição de ontem do Diário Oficial da União, causou reação no Legislativo e no Judiciário. No Supremo Tribunal Federal (STF), a regra foi vista como inconstitucional, enquanto parlamentares pressionam o presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (DEM-AP), a torná-la sem efeito.

A MP 966, publicada ontem por Bolsonaro, prevê que agentes públicos só poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se ficar comprovada a intenção de fraude ou “erro grosseiro”. A medida diz ainda ser preciso analisar “o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19 e suas consequências, inclusive as econômicas”.

Além de Bolsonaro, assinam a MP os ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Controladoria-Geral da República, Wagner Rosário. Em parecer encaminhado ao Planalto, as pastas justificam a medida com a necessidade de “salvaguardar a necessária autonomia decisória dos agentes públicos”.

Integrantes do STF que pediram para não ser identificados avaliaram, no entanto, que a medida gera uma espécie de “lei de anistia” e cria uma “blindagem” para servidores públicos. Um ministro aponta que a regra viola a Constituição, pois fere a previsão de responsabilidade por atos que causem prejuízos à administração pública ou a particulares.

A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) entrou ontem com uma ação direta de inconstitucionalidade contra a medida. “Uma MP com este teor dá a nítida impressão de ser uma tentativa de conseguir um ‘excludente de ilicitude’ para (o presidente) manter um comportamento irresponsável e nocivo à coletividade, concedendo-se uma autoanistia”, diz nota assinada por Paulo Jeronimo de Sousa, presidente da entidade. O Cidadania também acionou a Corte contra a medida.

Questionado ontem sobre a MP, Bolsonaro atribuiu a um pedido do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. “Foi um pedido, se não me engano, do Roberto Campos. Sempre tem críticas. Tudo o que faz tem crítica. O Parlamento vai poder, agora, aperfeiçoar o que por ventura não está de acordo com o entendimento deles”, afirmou em frente ao Palácio da Alvorada.

A tentativa de “blindar” servidores de eventuais questionamentos futuros na Justiça também está prevista em outra medida provisória voltada especificamente para ações do BC, mas que ainda não foi votada pelo Congresso.

No caso do auxílio emergencial de R$ 600 destinado a trabalhadores informais, por exemplo, houve dúvidas por parte da equipe econômica do governo se o benefício poderia ser pago sem a indicação de fontes da receita no Orçamento, um pré-requisito formal na hora de prever um gasto. O temor era, justamente, que o repasse do dinheiro pudesse resultar em crime de responsabilidade futuramente.

O próprio presidente tem sido alvo de críticas pela forma como tem agido em relação à pandemia. Ele chegou a ser alvo de uma notícia-crime no Supremo por descumprir orientações de organismos de saúde ao participar de manifestações de rua, estimulando aglomerações. Infringir normas sanitárias, porém, é um crime previsto no Código Penal e, portanto, não se enquadra nas isenções previstas na MP publicada ontem – restrita às esferas civil e administrativa.

‘Cheque em branco’. Para advogados, a medida tem mais peso político do que jurídico. Isso porque a legislação já prevê outras formas de punição a agentes que assinarem atos irregulares. “Temos que fazer um alerta aos gestores para que não tomem essa MP como um cheque em branco”, diz a coordenadora acadêmica da Escola Superior de Advocacia do Rio de Janeiro, Thaís Marçal.

Segundo o professor de Direito Administrativo da FGV-SP Carlos Ari Sundfeld, a MP protege um gestor que fez, por exemplo, uma compra de respirador que deixou de ser entregue por culpa da empresa. “A escolha do fornecedor terá sido um erro. Mas é um erro sem dolo, e o gestor não pode ser punido”, disse.

Para o advogado Eugênio Aragão, ex-procurador da República e ex-ministro da Justiça no governo de Dilmar Rousseff, a MP tem um caráter de ser um “cala a boca” a órgãos de fiscalização. “O governo sabe que na aquisição de equipamentos de saúde, como respiradores, está acontecendo muita irregularidade. E o Ministério Público está apurando”, disse Aragão.

Reencontro

Horas após criticá-lo numa reunião, o presidente Jair Bolsonaro recebeu ontem o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Na sequência, disse que os dois “voltaram a namorar”.