Título: O tortuoso caminho do Código Penal
Autor: Souto, Isabella
Fonte: Correio Braziliense, 25/12/2012, Brasil, p. 6

Congresso discutirá o projeto, repleto de polêmicas. Questões como o aborto vão dividir os parlamentares e mobilizar entidades religiosas e de direitos humanos

Recheado de polêmicas, o projeto de lei que reformula o ultrapassado Código Penal brasileiro (CP) — que no último dia 7 completou 72 anos — enfrentou, ao longo deste ano, divergências políticas, técnicas, morais e religiosas. E, graças a elas, foi adiado para 2013 o prazo final para a apresentação de emendas pelos senadores (até então marcado para o último dia 4) e do relatório que norteará a discussão no Senado.

Elaborado por uma comissão de 15 juristas, o texto que traz temas como legalização do aborto em determinadas situações, descriminalização do uso de drogas e legalização das casas de prostituição já recebeu mais de mil emendas parlamentares e manifestações de entidades civis e cidadãos comuns. E, com elas, a expectativa de muito bate-boca.

Enquanto a reforma do CP não sai do papel, o Congresso Nacional vem aprovando leis ordinárias com regras sobre vários crimes, mas sem alterar o Código Penal. "Há vários pontos urgentes que não poderiam ser adiados. E só com a pressão da sociedade a votação será agilizada. Do contrário, o projeto vai ficar parado novamente em 2013", alerta o jurista e professor de direito penal Luiz Flávio Gomes, que integra a comissão responsável pela elaboração do texto que traz as alterações do CP. Vale lembrar que, depois da aprovação no Senado, a matéria também passa por discussão na Câmara dos Deputados — e se houver mudanças, retorna para apreciação dos senadores.

Entre os principais temas urgentes apontados pelo jurista estão a definição de crime organizado (em substituição à formação de quadrilha), definição de terrorismo, corrupção na esfera privada e a previsão de pena de prisão em caso de enriquecimento ilícito. Mas há outros que prometem ainda muita discussão, como a possibilidade de aborto até a 12ª semana de gestação, desde que haja um laudo médico ou psicológico atestando que a mãe não tem condições de arcar com a maternidade. A regra, no entanto, provavelmente será retirada do projeto. Outro ponto controverso é a descriminalização do porte e do plantio de drogas para uso próprio.

Debate As duas normas estão mobilizando especialmente as bancadas religiosas do Congresso Nacional. Em recente reunião com parlamentares e líderes evangélicos, o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), assegurou que o projeto passará por um longo debate antes de ser votado. "O Senado vai ouvir, em audiências públicas, o povo, as diversas correntes de opinião, as pessoas dissidentes, aqueles que pensam diferentemente, os que queiram introduzir novas ideias. Isso se chama democracia", afirmou, na ocasião, o senador.

Para o jurista Luiz Flávio Gomes, não há motivo para alarde. "A droga continua ilícita, e só podendo ser comprada no paralelo, o que dificulta a venda e o tráfico. A mudança apenas reflete que o uso de droga não é problema de polícia, mas de saúde pública", justifica.

O projeto de reforma do Código Penal começou a tramitar no Senado em junho deste ano, depois de um trabalho de sete meses de revisão do texto feito pela comissão de juristas. A proposta apresentada em mais de 500 páginas acaba com vários tipos penais, cria crimes e gerou polêmica em todo o país ao tratar tabus com um viés liberal. Presidente da comissão e ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Gilson Dipp já chegou a dizer que a resistência às mudanças é "natural", e que o objetivo é modernizar o novo código.

As mudanças Confira o que muda no novo Código Penal em discussão no Congresso

ABORTO » Como é hoje É proibido, com a exceção de caso de estupro e risco de morte para a mãe

» O que o projeto prevê Passa a ser autorizado até a 12ª semana de gestação, se médico ou psicólogo atestar que a mãe não tem condições de arcar com a maternidade. Passa a ser legal para fetos anencéfalos

ACORDO ENTRE VÍTIMA E CRIMINOSO » Como é hoje Não há previsão legal

» O que o projeto prevê Em todos os crimes será possível acordo sobre o tempo de prisão, desde que vítima, Ministério Público e criminoso concordem. Nos furtos simples, pode haver a extinção da pena

ANIMAIS » Como é hoje Quem machucar animais pode ser punido com 3 meses a 1 ano de prisão. Abandoná-los não é crime

» O que o projeto prevê A pena para maus-tratos passa a ser de 1 ano a 4 anos de prisão, mesma punição prevista para o abandono, que passa a ser crime

BULLYING » Como é hoje Não há previsão legal

» O que o projeto prevê Vira crime punido com prisão de 1 a 4 anos

CORRUPÇÃO » Como é hoje O crime envolve um agente público. Se uma empresa pagar propina, quem responde pelo crime é a pessoa que a administra

» O que o projeto prevê Criminaliza a corrupção entre dois particulares. Pessoas jurídicas passam a responder por corrupção, com penas de prestação de serviços à comunidade

CRIMES ELEITORAIS Como é hoje » Existem mais de 80 crimes e a pena é de no máximo 6 meses de prisão

» O que o projeto prevê Serão definidos 14 crimes

CRIMES HEDIONDOS » Como é hoje Estão nessa categoria o homicídio — simples ou qualificado —, o latrocínio e o estupro

» O que o projeto prevê Inclui na qualificação a redução à condição análoga de escravo, o financiamento ao tráfico de drogas, o racismo, o tráfico de pessoas e os crimes contra a humanidade

DIRIGIR ALCOOLIZADO » Como é hoje É necessário o teste do bafômetro ou exame de sangue para provar a embriaguez

» O que o projeto prevê Inclui no rol de provas testemunho de policial ou exame clínico

DROGAS » Como é hoje Apenas o consumo não é crime

» O que o projeto prevê Plantar, comprar, guardar ou portar qualquer tipo de droga para uso próprio passa a ser legal. Já o consumo perto de crianças é crime.

ENRIQUECIMENTO ILÍCITO » Como é hoje Agentes públicos que não comprovarem a origem de bens são punidos apenas com sanções administrativas e cíveis

» O que o projeto prevê Passa a ser crime punido com pena de 1 a 5 anos de prisão

ESTUPRO » Como é hoje O crime envolve qualquer ato libidinoso praticado com violência ou ameaça, incluindo modalidades como um beijo mais lascivo, apalpadela ou esfregão

» O que o projeto prevê O texto desdobra as condutas de ataque sexual em duas: o estupro seria apenas o ato sexual vaginal, anal ou oral praticado mediante violência ou grave ameaça, punido com prisão de 6 a 10 anos. As outras condutas de caráter sexual menos agressivas se chamariam molestação sexual, punida com pena de 2 a 6 anos de prisão, menor que a do estupro

EUTANÁSIA » Como é hoje Incluído no rol de homicídio comum, com pena de 6 a 20 anos de prisão

» O que o projeto prevê Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal a pedido dele vira um crime específico, com pena de 2 a 4 anos de prisão. Em caso de laços de afeição com a vítima, pode deixar de ser crime

HOMOFOBIA » Como é hoje O preconceito não é crime. Xingamentos podem ser enquadrados como injúria, e o homicídio baseado em homofobia pode ser qualificado com "motivo torpe"

» O que o projeto prevê Será aplicada à homofobia a mesma pena do racismo (2 a 5 anos de prisão), além de se tornar crime imprescritível e inafiançável. A pena por homicídio, lesão corporal, tortura e injúria seria aumentada, caso a motivação fosse o preconceito

ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA » Como é hoje A conduta é enquadrada como formação de quadrilha, com pena de até 3 anos

» O que o projeto prevê Cria a figura de organização criminosa, que é a reunião de pessoas em estrutura hierarquizada, com a participação de funcionário público, para cometer crimes graves. A sanção é de até 10 anos de prisão

PENA MÁXIMA » Como é hoje A pena máxima é de 30 anos — mesmo em caso de condenação a tempo superior

» O que o projeto prevê Condenados beneficiados pelo teto de 30 anos que voltem a cometer crimes terão a pena somada à punição anterior, até o prazo máximo de 40 anos

PROSTITUIÇÃO » Como é hoje A casa de prostituição é ilegal e o proprietário é punido com até 5 anos de prisão

» O que o projeto prevê Legaliza as casas, mas pune com 9 anos de prisão o dono de prostíbulo que obrigar alguém a se prostituir

TERRORISMO » Como é hoje Não há crime específico

» O que o projeto prevê Identifica o crime como comportamento motivado por "ódio e preconceito" e que causa terror à população

TORTURA » Como é hoje O crime é punido com prisão de 2 a 8 anos e pode prescrever

» O que o projeto prevê A pena aumenta para 4 a 10 anos e o crime se torna imprescritível