Valor econômico, v.21, n.5027, 23/06/2020. Especial, p. A18

 

Com guinada ideológica, Araújo abala as estruturas do Itamaraty

Daniel Rittner

23/06/2020

 

 

Em uma das últimas recepções da comunidade diplomática em Brasília, antes do primeiro caso de coronavírus na cidade, o embaixador da França abriu sua residência oficial, localizada a menos de um quilômetro da Esplanada dos Ministérios, para despedir-se dos amigos. Bebericando vinho e caipirinha, os convivas sorriam nos jardins da casa, que ostenta na sala um piano de cauda onde repousa a foto do presidente Emmanuel Macron e da primeira-dama Brigitte, rotulada como "feia" por autoridades brasileiras.

Após dois anos e meio no Brasil, o embaixador Michel Miraillet já dominava o português, mas usou sua língua materna para fazer um discurso emocionado e convidar todos para que o visitassem em Paris, onde acaba de assumir um dos cargos mais importantes no Quai D'Orsay, a chancelaria francesa. Diplomatas europeus e de países africanos, jornalistas e representantes de organismos multilaterais, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Carmen Lúcia e a ex-procuradora-geral Raquel Dodge aplaudiram prolongadamente. Uma ausência, porém, foi notada. Ao contrário do que se costuma ver em despedidas do tipo, não havia um único alto funcionário do Itamaraty ali.

Seria exagero dizer que a história, por si só, ilustra um suposto isolamento da diplomacia brasileira. Mas o episódio revela como o Brasil, antes visto como facilitador de consensos em negociações internacionais e queridinho dos países emergentes, hoje cultiva distanciamento - e às vezes até mal-estar - com vários dos nossos antigos parceiros estratégicos.

Um dos postos mais nobres da carreira, por exemplo, a embaixada em Buenos Aires tornou-se símbolo de inoperância forçada e tem ordens de manter contatos meramente formais, apenas em níveis técnicos, com o governo do esquerdista Alberto Fernández. É o oposto do que deveria fazer uma missão diplomática, especialmente sendo a Argentina principal sócia do Brasil no Mercosul e tradicional maior destino das exportações de produtos manufaturados.

Para dentro e para fora, a gestão Ernesto Araújo abalou as estruturas do Ministério das Relações Exteriores. Nem mesmo quando o PT chegou ao poder, em 2003, a guinada foi tão grande. Cada vez mais próximo do presidente Jair Bolsonaro, o chanceler conduziu a saída do Brasil de fóruns regionais como a Unasul e Celac, fechou sete embaixadas na África e no Caribe que haviam sido abertas nos anos Lula-Dilma Rousseff, mudou posições históricas na ONU para alinhar-se aos Estados Unidos, impôs dificuldades em negociações ambientais e privilegiou o relacionamento na Europa com dois países comandados por líderes da direita ultraconservadora (Hungria e Polônia), que críticos avaliam ser de baixíssima complementaridade com o Brasil.

"O país se encontra no maior isolamento diplomático dos últimos 50 anos", afirmou ao Valor o historiador Carlos Malamud, já apontado como um dos 50 intelectuais ibero-americanos mais influentes pela revista espanhola "Esglobal" e hoje pesquisador do Real Instituto Elcano, em Madri.

Para ele, a boa fama da diplomacia brasileira "está se dilacerando" na Europa e atualmente "seria impensável" ver o Brasil à frente de grandes coalizões de países emergentes em fóruns multilaterais, como ocorreu no passado. Malamud acha que o discurso ambíguo sobre mudanças climáticas, a aliança com um governo impopular como o de Donald Trump e a postura na pandemia ajudam a dilapidar esse estoque de imagem positiva do país.

"Há uma ideologização extrema da política externa", acrescenta Malamud, que ironiza o discurso de que existiria uma má vontade da opinião pública internacional, supostamente de esquerda, contra a dupla Bolsonaro-Araújo. "Isso só faz sentido se partimos do princípio de que todos aqueles que se encontram a mais de dez centímetros de Olavo de Carvalho são comunistas."

A Associação dos Diplomatas Brasileiros (ADB) manifestou, em reuniões, o temor de que representações do país no exterior e seus profissionais passem a ser novos alvos de ataques físicos por islâmicos radicais, como já ocorreu com embaixadas dos Estados Unidos e do Reino Unido. Pichações e pequenos protestos de cunho político foram registrados algumas vezes na Europa, mas o receio é de aumento da hostilidade, na esteira de atitudes como a promessa de mudança da embaixada em Israel para Jerusalém (ora em banho-maria) e do apoio ao ataque americano que matou o general iraniano Qassem Soleimani no Iraque.

O diplomata aposentado Roberto Abdenur, ex-embaixador em Washington, brinca que o Brasil hoje só tem "três países e meio" como amigos: Israel, Hungria e Polônia. "Meio são os Estados Unidos, porque estamos excessivamente alinhados com as ideias do Trump e antagonizamos com a outra metade, os democratas", afirmou Abdenur, em um seminário virtual da ADB, na semana passada. "Essa política externa representa uma brutal ruptura com o nosso patrimônio diplomático. E o resultado disso é o encolhimento da presença do Brasil no plano internacional."

O chacoalhão dado por Araújo também moveu as estruturas internas do Itamaraty. É impossível estimar o grau exato de discórdia entre seus colegas, mas há algumas evidências. De ministros de primeira classe a secretários, que compõem os seis degraus da carreira, inúmeros subordinados do chanceler passaram a requisitar transferência para postos normalmente desvalorizados: consulados (que lidam com a burocracia do atendimento aos cidadãos brasileiros no exterior), departamentos administrativos, embaixadas na periferia da Ásia ou da Europa. Esses postos passaram a ser vistos como refúgios, onde se pode ficar fora do "centro nervoso" da política externa e escapar das desavenças.

Nomes identificados com gestões petistas, a começar pelos ex-chanceleres de Dilma, foram alocados em postos de segunda divisão. Tratados com deferência pelo governo Michel Temer, em respeito à sua trajetória profissional, recuaram vários patamares: Mauro Vieira saiu da missão na ONU em Nova York para a Croácia, Antônio Patriota migrou da Itália para o Egito, Luiz Alberto Figueiredo deixou Portugal e foi para o Qatar.

Mesmo sem jamais terem feito declarações contrárias a Bolsonaro ou a Araújo, outros diplomatas respeitados pelos colegas ficaram meses sem função, gastando suas horas de trabalho na biblioteca do Itamaraty. Em comum, tinham passagens como assistentes do ex-ministro Celso Amorim ou do ex-assessor presidencial Marco Aurélio Garcia, em governos petistas.

Logo que o chanceler tomou posse, em janeiro de 2019, surgiu uma lenda nos corredores: a de que haveria infiltrados da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) na área de informática e tecnologia do ministério. Bastou esse folclore para espalhar uma nova prática: mensagens trocadas por aplicativos de telefone frequentemente são "apagadas para todos" na conversa, logo em seguida ao disparo, como se representassem alguma ameaça. Grupos de WhatsApp formados por ex-alunos de uma mesma turma no Instituto Rio Branco ou diplomatas que haviam servido juntos em um país, por exemplo, hoje raramente têm troca de opiniões sobre política. Muitos relatam temor de manifestarem discordância e serem "dedurados".

"O clima é de humilhação e caça às bruxas", diz o ex-ministro da Cultura e deputado federal Marcelo Calero (Cidadania-RJ), que se licenciou da carreira diplomática para o exercício do mandato. Ele encaminhou ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a proposta de criar uma comissão de acompanhamento externo do Itamaraty. "Moderação e previsibilidade são atributos da própria diplomacia, mas hoje existe uma contaminação pela ideologia, um fanatismo quase místico", afirma.

Uma queixa dos funcionários é a dificuldade de acesso ao gabinete de Araújo. "Não fomos recebidos pelo ministro uma única vez para discutir assuntos da carreira", lamenta o oficial de chancelaria João Marcelo Melo, presidente do sindicato dos servidores, o Sinditamaraty. Apesar disso, também nota aspectos positivos, como ritmo de trabalho da corregedoria interna (responsável pela apuração de denúncias e irregularidades) e o trânsito de Araújo no Palácio do Planalto, o que ajuda a garantir recursos financeiros em momentos críticos (como na repatriação de brasileiros durante a pandemia).

Um antigo conhecedor do Itamaraty divide os diplomatas em três grupos: os "true believers", que realmente acreditam nas diretrizes dadas por Araújo; quem preferiu submergir por um tempo em postos invisíveis e não ter identidade vinculada à gestão Araújo; e os que abraçaram o "ernestismo" não por convicção, mas para extrair benefícios do sistema de promoções e concessão de bons postos no Itamaraty, ainda muito pautados por relações de amizade e compadrio.

Nas últimas semanas, contrariando o habitual comedimento diplomático, alguns embaixadores fora do país subiram o tom para contestar críticas a Bolsonaro e adotar uma postura chamada de "rotweiller" no Itamaraty. Foi lido como tentativa de criar proximidade com a nova cúpula ministerial. O representante do Brasil em Madri, Pompeu Andreucci, escreveu a "El País" dizendo que o diário tem "arrogância obscurantista" e "vocação neocolonialista". O chefe da missão em Luanda, Paulino Franco, rebateu um ex-ministro e colunista de Angola, acusando-o de "deixar-se levar [...] por opiniões simplistas e maledicentes" de opositores e setores radicais no Brasil.

Quando analisa esse tipo de episódio, um dos mais experientes diplomatas da ativa se lembra do embaixador chileno em Brasília, nos anos 1980: "Sempre que algum jornal brasileiro chamava o governo Pinochet de ditadura, ele mandava uma longa carta exaltando a democracia no Chile. A imagem de um país reflete o que ele é, isso não se muda com uma carta".

Araújo foi procurado pelo Valor, mas não comentou o assunto até a conclusão desta edição.