O globo, n. 31699, 21/05/2020. Opinião, p. 2

 

Radicalismo domina a Saúde e a Cultura

21/05/2020

 

 

Afastar dois médicos do cargo de ministro da Saúde na mais grave epidemia mundial em cem anos, deixando no posto um general do Exército, levado a liberar um protocolo que permite o uso de um medicamento sem eficácia comprovada contra a Covid-19, e ainda capaz de causar sérios efeitos colaterais, confirma que a radicalização do presidente Bolsonaro não tem limites. Nada o sensibiliza, nem o Brasil ter atingido ontem a marca de 291.579 infectados e 18.859 mortos, números trágicos, mais ainda se considerarmos a existência de grande subnotificação.

O escárnio de Bolsonaro diante da tragédia em marcha ficou registrado no vídeo em que o presidente brinca com a palavra “cloroquina”, nome do medicamento que ele insiste em incluir nas prescrições contra a Covid-19, mesmo sem qualquer respaldo médico-científico. Importa é apressar o fim da epidemia, para que os danos causados pelo Sars-CoV-2 na economia sejam abreviados e não prejudiquem seus projetos eleitorais para 2022.

Pode ser coincidência o aprofundamento da intervenção na Saúde, com as demissões de Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, ter na sequência a esperada saída de Regina Duarte da Secretaria de Cultura, depois que a atriz não se entendeu com o núcleo mais ideológico do bolsonarismo, nem conseguiu representar no governo o meio artístico, muito atingido pela crise econômica, sem que recebesse da secretária qualquer ajuda. Coincidência ou não, os fatos comprovam que o movimento de radicalização de Bolsonaro atinge o Ministério da Saúde e a Cultura.

O presidente quer o ministério alinhado à sua campanha contra o isolamento social, postura que dificilmente será apoiada por especialistas que tenham carreira a zelar. Tampouco estarão de acordo com a disseminação de um medicamento que vem sendo reprovado no uso contra a Covid-19 em testes amplos, feitos com rigor dentro e fora do país. Entrevistado ontem pela GloboNews, o infectologista Jean Gorinchteyn, do hospital Emílio Ribas, de São Paulo, citou uma pesquisa do British College, em que também se detectaram efeitos colaterais perigosos em rins, fígado e coração. Mas o entorno de Bolsonaro foi contaminado, tudo indica, em contatos com a extrema direita republicana ligada a Trump, pela expectativa de que a cloroquina resolverá as dificuldades políticas do presidente. Trump tenta a reeleição em novembro.

Bolsonaro, na prática, assumiu o Ministério da Saúde. Mantendo o general Eduardo Pazuello, para assinar novos protocolos, ou um médico que aceite esta tutela. Na Cultura, é evidente que a Secretaria na visão bolsonarista tem de ser um bunker na “guerra cultural” e também para esmagar a esquerda onde ela esteja, no meio artístico e cultural. Regina Duarte até fez alguma coreografia, como na patética entrevista à CNN Brasil, mas o chamado núcleo ideológico quer mais.