Correio braziliense, n. 20860 , 03/07/2020. Ciência&Saúde, p.14

 

Vírus circula no Brasil desde novembro

Paloma Oliveto

03/07/2020

 

 

Partículas do Sars-CoV-2 são identificadas em amostra de esgoto coletada em Florianópolis no ano passado. Descoberta feita pela Universidade Federal de Santa Catarina reforça suspeitas de que o causador da covid-19 pode não ter surgido em cidade chinesa

Um mês antes que o Sars-CoV-2 fosse conhecido, o novo coronavírus já circulava no Brasil. Em 29 de novembro, 100 mil partículas do micro-organismo por litro se encontravam no esgoto de uma região de Florianópolis, de acordo com estudo liderado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Com a descoberta, publicada na plataforma on-line de artigos científicos Medrvix.org, o país passa a ser o primeiro das Américas a ter um registro do vírus.

A identificação do Sars-CoV-2 na rede de esgoto de Florianópolis soma-se a descobertas recentes em países como Austrália, Holanda, França, Itália e Espanha de que o vírus estava ativo muito antes do que se imaginava. Juntas, essas pesquisas colocam em dúvida se o novo coronavírus surgiu, de fato, na chinesa Wuhan, de onde se afirma que ele se originou.

Em uma coletiva de imprensa on-line, a pesquisadora Maria Elisa Magri, do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFSC, contou que o armazenamento de amostras do esgoto é uma rotina da unidade acadêmica. “Temos como praxe deixar amostras preservadas, há banco de amostras em vários laboratórios, de vários locais da cidade”, disse. A região exata em que as partículas virais foram detectadas não são descritas no artigo, por motivos éticos, explicou a cientista. Segundo Magri, exames em materiais referentes a 31 de outubro e 6 de novembro não apontaram a existência do Sars-CoV-2. Na de 29 de novembro, porém, havia. Ela esclarece que as amostras avaliadas são de esgoto bruto, o que sai direto das residências.

Até agora, o registro mais antigo do causador da covid-19 nas Américas é de 21 de janeiro, quando se confirmou o primeiro caso em um paciente norte-americano. Como ainda não há outras pesquisas retrospectivas com amostras de esgoto no continente, não se sabe quando o vírus começou a circular na região. Globalmente, em 12 de dezembro, foi feita a primeira menção pública a um “surto viral”, pela televisão pública chinesa. Hoje, sabe-se que um paciente foi infectado no país em 17 de novembro, mas, até então, ninguém suspeitava da existência do micro-organismo. No Brasil, casos inaugurais da infecção datam do fim de fevereiro.

Teste referência

As amostras de esgoto analisadas pela equipe da UFSC passaram pelo mesmo teste que identifica, em seres humanos, a presença do vírus: o PCR. Trata-se de uma tecnologia que transforma o RNA viral em DNA complementar. Depois disso, o material genético é amplificado em 100 milhões de vezes, permitindo identificar sequências específicas de um micro-organismo, não encontradas em nenhum outro.

Atualmente, o PCR é o único método que dá a certeza da identificação do Sars-CoV-2. “Tivemos muito cuidado na manipulação das amostras e também de buscar vários genomas específicos do Sars-CoV-2. Além disso, os testes foram refeitos em diversos laboratórios independentes”, ressalta a cientista que liderou os estudos, Gislaine Fongaro, do Laboratório de Virologia Aplicada da UFSC.

Na amostra de novembro, os pesquisadores contabilizaram 100 mil partículas do vírus por litro de esgoto. Como um reflexo do aumento no número de casos, em março, esse número passou para 1 milhão por litro. Apesar da acurácia dos resultados, essa primeira pesquisa — o grupo trabalha em novas análises do material — não permite saber como o vírus chegou a Florianópolis. “Por meio de filogenias (história da evolução de um ser) e de estudos genéticos, será possível fazer a triagem do vírus e jogar luz sobre uma possível rota do Sars-CoV-2 e de como ele chegou por aqui”, acredita.

Sequenciamento

Patrícia Hermes Stoco, pesquisadora do Laboratório de Protozoologia da UFSC, diz que a equipe trabalha, agora, no sequenciamento do genoma completo dos vírus identificados nas amostras, para tentar fazer essa avaliação. “Com o resultado, talvez possamos traçar um caminho retrospectivo do vírus, comparando com os perfis do Sars-CoV-2 em bancos genéticos”, diz. Porém, a cientista esclarece que não há certeza se será possível apontar a origem do micro-organismo detectado no esgoto catarinense em novembro. “Nessas amostras, não identificamos nenhuma mudança significativa (do vírus) em relação ao Sars-CoV-2 que está circulando no mundo como um todo.”

As cientistas afirmam que, além de mostrar que o causador da covid-19 estava no Brasil muito antes que se imaginava, o estudo evidencia que a análise de esgotos é um importante método de vigilância em saúde. “O esgoto é uma ferramenta epidemiológica muito importante para a implementação de programas sentinelas. É um material precioso”, destaca Gislaine Fongaro.

Frase

“Por meio de filogenias (história da evolução de um ser) e de estudos genéticos, será possível fazer a triagem do vírus e jogar luz sobre uma possível rota do Sars-CoV-2 e de como ele chegou por aqui”

Gislaine Fongaro, líder do estudo

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Versão dominante é mais transmissivel

03/07/2020

 

 

Em meados de março, quando o coronavírus ainda não havia chegado com força às Américas, duas variantes do Sars-CoV-2 estavam circulando. As mutações, chamadas G614 e D614, tinham apenas uma pequena diferença na proteína spike, a maquinaria viral que os coronavírus usam para entrar e se reproduzir nas células hospedeiras.

Em um novo estudo, uma equipe internacional de cientistas mostra que a versão G do vírus passou a dominar os casos em todo o mundo. Eles relatam que essa mutação não torna o Sars-CoV-2 mais letal, mas ajuda o vírus a se copiar, resultando em uma maior carga viral nos pacientes. A pesquisa, liderada por cientistas da Universidade de Duke, do Laboratório Nacional Los Alamos e do Instituto La Jolla (LJI), todos na Califórnia, foi publicada na revista Cell.

“Estamos focados na resposta imune humana, porque a LJI é a sede do Consórcio de Imunoterapia com Coronavírus (CoVIC), uma colaboração global para entender e avançar os tratamentos de anticorpos contra o vírus”, diz a professora Erica Ollmann Saphire, que lidera o CoVIC. A cientista explica que os vírus adquirem mutações regularmente para ajudá-los a “escapar” dos anticorpos produzidos pelo sistema imunológico humano. Quando o micro-organismo adquire muitas dessas alterações individuais, afasta-se do vírus original. Os pesquisadores chamam esse fenômeno de desvio antigênico. A deriva antigênica é parte do motivo pelo qual é preciso uma nova vacina contra a gripe a cada ano.

Durante a pesquisa, Saphire colaborou com Bette Korber, pesquisadora do Laboratório Nacional Los Alamos (LANL), autora sênior do estudo. Korber e a equipe desenvolveram ferramentas para rastrear mutações do Sars-CoV-2 em todo o mundo. O rastreamento mostrou que, embora os vírus G e D se espalhem amplamente pelo globo, o G foi a variante dominante em meados de março.

Resposta imune

Enquanto isso, Saphire e o coautor David Montefiore, Ph.D. do Duke University Medical Center, lideraram a pesquisa sobre a resposta imune a essas variantes. Eles determinaram que os vírus portadores de spike com a mutação G cresceram duas a três vezes mais eficientemente. Os cientistas usaram amostras de seis moradores de San Diego para testar como os anticorpos humanos neutralizavam as variantes D e G.

Os experimentos mostraram que a resposta imune humana pode neutralizar o novo vírus G tão ou melhor do que o D (versão original do micro-organismo). Isso significa que o sistema imunológico não precisa produzir mais anticorpos ou substâncias mais fortes contra a variante, embora ela tenha mais sucesso na disseminação. A descoberta está de acordo com o que os médicos observaram em pacientes com covid-19.

“Os dados clínicos desse artigo da Universidade de Sheffield mostraram que, embora os pacientes com o novo vírus G tenham mais cópias virais do que os infectados com D, não houve um aumento correspondente na gravidade da doença”, diz Saphire. Korber acrescenta: “Essas descobertas sugerem que a forma mais nova do vírus pode ser transmitida mais rapidamente do que a original — independentemente de essa conclusão ser ou não confirmada, ela destaca o valor do que já eram boas ideias: usar máscaras e manter o distanciamento social”.

Saphire diz que o novo coronavírus pode ser bem-sucedido em sua disseminação porque muitos pacientes foram infectados com uma versão branda do vírus e tiveram poucos ou nenhum sintoma. “O vírus não ‘quer’ ser mais letal. Ele ‘quer’ ser mais transmissível”, explica. “Um vírus ‘quer’ que você o ajude a espalhar cópias de si mesmo. Ele ‘quer’ que você vá para o trabalho, reuniões escolares e sociais e o transmita a novos hospedeiros. Um vírus sobrevivente é aquele que se espalha mais e com mais eficiência. Um micro-organismo que mata seu hospedeiro rapidamente não chega tão longe — pense nos casos de ebola. Já aquele que deixa seu hospedeiro continuar a viver normalmente se disseminará melhor. É o caso do que causa o resfriado comum.”

Frase

“Um vírus sobrevivente é aquele que se espalha mais e com mais eficiência. Um micro-organismo que mata seu hospedeiro rapidamente não chega tão longe”

Ollmann Saphire, líder do Consórcio de Imunoterapia com Coronavírus (CoVIC)