Valor econômico, v.21, n.5020, 12/06/2020. Política, p. A6

 

Congresso articula fórmula própria para criar renda básica

Fabio Graner

Marcelo Ribeiro

12/06/2020

 

 

Em paralelo ao governo, o Congresso Nacional trabalha na busca de fontes para custear um programa de renda básica que suceda o auxílio emergencial e seja mais amplo que o Bolsa Família. Técnicos do Legislativo já mapearam um vasto número de programas sociais existentes e fontes adicionais de recursos para bancar esse novo programa.

Eles redigem alternativas a serem levadas ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que ontem já recebeu informações preliminares, e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP).

O trabalho vêm de uma demanda de deputados do grupo Câmara Viva e de senadores do Muda Senado, que congregam cerca de 40 parlamentares de diferentes partidos e campos políticos, como os deputados Felipe Rigoni (PSB-ES), João Campos (PSB-PE), Marcelo Ramos (PL-AM), Pedro Paulo (DEM-RJ) e Tabata Amaral (PDT-SP) e os senadores Alessandro Vieira (Cidadania-SE), Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e Fabiano Contarato (Cidadania-ES), entre outros. Maia é um dos principais incentivadores do movimento feito por esse grupo.

O levantamento técnico mostra que os programas já existentes, como Bolsa Família, Abono Salarial, Seguro Defeso, parte do Seguro Desemprego e do Auxílio Reclusão, Auxílio creche e Salário Família representam R$ 92 bilhões. O fluxo de recursos hoje direcionados a fundos públicos, cuja execução financeira tem ficado abaixo de 50% nos últimos anos, é outra fonte para bancar essa renda básica, com mais R$ 27 bilhões.

Os dois conjuntos de fontes somados cobririam a maior parte dos custos de R$ 138 bilhões da mais conservadora das propostas, que no momento prevê benefício de R$ 100 por pessoa em um universo com renda familiar per capita de meio salário mínimo.

Esse programa ainda pagaria mais R$ 100 para cada criança de zero a seis anos. Assim, faltaria cobrir um buraco de R$ 19 bilhões para que o programa não mudasse o quadro fiscal atual. Esse desenho mais conservador considera a manutenção do atual teto de gastos.

Nas versões mais ousadas que são discutidas, com pagamento de R$ 150 por pessoa mais um adicional do mesmo valor por criança de zero a seis anos, o custo subiria para R$ 215 bilhões e demandaria um esforço maior em termos de busca de fontes de financiamento. Também exigiria, no mínimo, mudanças na regra do teto de gastos, já que a despesa agregada subiria fortemente em relação aos níveis atuais.

Além de buscar formas de financiar versões mais ousadas do programa, os técnicos mapeiam fontes de recursos possíveis para financiar a manutenção do auxílio emergencial de R$ 600 até o fim do ano e um período de transição que permitisse a redução gradual desse benefício até que ele ganhasse uma configuração definitiva e com financiamento permanente a partir de uma reforma tributária feita com calma. As fontes adicionais nesse caso viriam da revisão de desonerações e isenções tributárias e também do saldo de fundos já existentes.

Nesse caso, contudo, não seria dinheiro novo, dado que os recursos já entraram na conta única do Tesouro Nacional em anos anteriores e seu uso na prática seria como financiar o programa com dívida. Com isso, as fontes de custeio passariam de R$ 459 bilhões.

Uma hipótese adicional de financiamento seria por meio da criação de novos tributos sobre os mais ricos, o que daria mais tempo de transição para um modelo definitivo financiado por um novo sistema tributário. Esse caminho, contudo, tem pouca chance de prosperar, dada a forte rejeição a aumentos de carga tributária no Congresso.

Entre as possibilidades cogitadas de taxação estaria uma contribuição emergencial de 10% sobre rendas acima de R$ 15 mil, que subiria para até 20% nos rendimento superiores a 80 salários mínimos. Além disso, reaparecem propostas de taxar dividendos e adicionar faixas de tributação no Imposto de Renda de Pessoa Física. Nesse quadro, o montante de fontes de financiamento seria de R$ 709 bilhões.

Entusiasta de um novo programa de renda permanente, Maia tem reforçado, nos bastidores, ser contrário a qualquer elevação de carga tributária, ainda que seja para gerar receitas para o eventual substituto do Bolsa Família. Ele tem destacado que a criação do novo programa não está na proposta de emenda constitucional (PEC) do Orçamento de Guerra, que criou orçamento paralelo para o período da calamidade pública. Com isso, o novo programa precisará respeitar as regras fiscais, sendo a principal delas hoje o teto de gastos, que também é alvo de forte defesa por parte da equipe econômica.

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Para Frei Betto, governo quer fazer apropriação

Cristiane Agostine

12/06/2020

 

 

Coordenador do programa "Fome Zero" no governo Luiz Inácio Lula da Silva, o escritor Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, criticou como "eleitoreira" a proposta do presidente Jair Bolsonaro de transformar o Bolsa Família em um novo programa assistencial, o "Renda Brasil". Para Frei Betto, Bolsonaro busca se apropriar de uma das principais marcas do PT no governo para ampliar sua base de apoio entre os mais pobres e tentar manter-se no poder, em meio à crise sanitária que matou mais de 40 mil pessoas no país.

"É uma maquiagem no Bolsa Família para Bolsonaro poder ampliar a base eleitoral que vem decrescendo, principalmente no Nordeste, área mais sofrida do país. É onde Bolsonaro teve menos votos", afirmou Frei Betto.

A região, com o maior número de famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, foi a única em que o presidente perdeu em 2018 para o candidato do PT, Fernando Haddad.

E é no Nordeste que está a maior rejeição ao governo: 48% dos eleitores consideram a gestão ruim ou péssima e 22% avaliam como regular, segundo pesquisa do Datafolha realizada no fim de maio. Na média nacional, a reprovação é menor, de 43% que consideram o governo como ruim ou péssimo.

"É uma tentativa de Bolsonaro criar a sensação de que todos serão beneficiados. Mas duvido muito que isso seja implementado", disse Frei Betto.

O "Renda Brasil foi anunciado na terça-feira pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, como uma espécie de renda mínima no país, e deve unificar programas sociais depois da pandemia. Não há detalhes, no entanto, sobre como funcionará, quantas pessoas serão atendidas, qual o valor do benefício nem qual o custo total sobre o Orçamento.

Frei Betto questionou a capacidade de o governo Bolsonaro conseguir implementar o programa e citou as fraudes no repasse do auxílio emergencial de R$ 600, destinado a desempregados, trabalhadores informais, autônomos e microempreendedores individuais, para minimizar o impacto econômico gerado com a pandemia. Mais de 70 mil militares foram beneficiários e, segundo o Tribunal de Contas da União, 8,1 milhões de pessoas receberam indevidamente os recursos, enquanto 2,3 milhões de cidadãos que estão no Cadastro Único de programas sociais não conseguiram o auxílio emergencial.

"Não é fácil de resolver isso se não tem metodologia para poder beneficiar quem mais precisa. Essas pessoas vão continuar marginalizadas", disse. "Defendo que todos os brasileiros tenham uma renda básica, mas não acredito que este governo vai conseguir implementar. Se for implementado, será meramente uma maquiagem do Bolsa Família com algum complemento, em caráter emergencial, de R$ 100, R$ 200 até o período eleitoral. Isso não resolve", afirmou.

Ainda no início do primeiro mandato de Lula, Frei Betto discordou do então presidente petista por ter deixado de lado o programa Fome Zero para implementar o Bolsa Família. Ao sair do governo, em 2004, o frade dominicano criticou a gestão do PT por trocar um projeto de nação por um projeto de poder. O Fome Zero, lembrou, tinha um "caráter emancipatório" e pretendia tirar os beneficiários do programa em até três anos, depois de conseguirem "seus próprios meios de vida". Já o Bolsa Família tem o caráter "compensatório", disse. "Quem ingressa no Bolsa Família não sai. Se sair, volta para a extrema pobreza. Esse programa do Bolsonaro é na linha do Bolsa Família, apenas uma mudança de nome para não evocar o governo Lula. É uma maquiagem."

Na avaliação de Frei Betto, a desigualdade e a miséria continuarão no país mesmo com essa mudança. "Enquanto não tocar em questão estrutural não tem jeito. Tem de fazer uma reforma tributária progressiva, taxando mais quem ganha mais. Tem que evitar a dilapidação do patrimônio público. O que é falar de Renda Básica quando o próprio presidente do Banco do Brasil levanta a bandeira da privatização do banco? O governo quer beneficiar quem?", questiona o escritor. Autor de 68 livros, o jornalista e frade dominicano lançou neste ano "O Diabo na Corte - Leitura Crítica do Brasil Atual", da Editora Cortez, onde faz uma análise da eleição de 2018 e do governo Bolsonaro.

Para Frei Betto, Bolsonaro deve enfrentar dificuldades para ampliar a base de apoio entre os mais pobres mesmo com a implementação de programas de transferência de renda. Interlocutor de movimentos sociais, o escritor avaliou que a aprovação do presidente esbarra no forte crescimento do desemprego no país e na falta de ações para combater a pandemia. E cita também a divisão da direita no apoio a Bolsonaro. "Não sei onde esse governo vai acabar, mas vai ser numa tragédia. Não dá para pensar que o presidente vai ficar até o fim do mandato nesse circo de horrores. Ele não tem base sólida."

Frei Betto avaliou que há riscos de uma ruptura democrática e cobrou a união dos opositores ao presidente para que se articule o impeachment. "Não se pode ficar refém do eleitoralismo, de cada um só pensando nas próximas eleições. Temos que pensar na próxima geração", disse. "Não sei se [Hamilton] Mourão será melhor, mas de todas as formas teremos que suportar um governo militar até o fim do mandato."

Amigo antigo de Lula, o escritor disse que o ex-presidente tem de superar divergências e construir pontes. "Em política não se pode confundir as diferenças pessoais com os interesses nacionais ou internacionais. Ele mesmo procedeu assim quando foi candidato e na Presidência. Dialogou até com [Paulo] Maluf. Fernando Henrique Cardoso e Ciro Gomes não podem ser colocados no plano do inimigo. São pessoas que vale a pena dialogar, dialogar, trocar ideias. Ninguém vai exigir que o outro abra mão de princípios, mas não se pode nunca fechar a porta para o outro", disse. "Estão em jogo os interesses nacionais, é o destino de um país. Espero que Lula volte a dialogar com as lideranças políticas que têm um mínimo de sensibilidade social."

O escritor alertou ainda para a necessidade de os partidos progressistas voltarem a "dialogar com o povão" e fazerem o trabalho de base, cada vez mais ocupado pelas igrejas evangélicas conservadoras e pela direita. "Isso foi esquecido pelo PT. A esquerda se elitizou. Uma vez que virou governo, se afastou das bases e deixou de realmente fazer a alfabetização política do povo. Era um desafio importante."