Valor econômico, v.21, n.5024, 18/06/2020. Política, p. A12

 

Câmara suspende pagamento de acordo trabalhista até dezembro

Raphael Di Cunto

18/06/2020

 

 

A Câmara dos Deputados aprovou ontem que os pagamentos de acordos trabalhistas judiciais ou extrajudiciais serão suspensos pelo menos até 31 de dezembro para as empresas que tiveram suas atividades paralisadas total ou parcialmente pelo poder público durante a pandemia da covid-19. A medida valerá para os acordos feitos para quitar ações trabalhistas ou rescisão do contrato de trabalho e também para quem aderiu a planos de demissão voluntária (PDV).

A emenda, da deputada Soraya Santos (PL-RJ), foi incluída na Medida Provisória (MP) 927, que promove mudanças na legislação trabalhista durante o período de calamidade pública decretada por causa da covid-19 (a princípio, até 31 de dezembro). Pela proposta, que agora será analisada pelo Senado, o trabalhador que foi demitido e fez um acordo para receber a rescisão de forma parcelada poderá ficar com as parcelas suspensas e só voltar a receber em janeiro.

O mesmo valerá para um trabalhador que aderiu ao PDV de uma empresa e ainda está recebendo as parcelas de seu pacote de benefícios. Pela emenda, a empresa que teve sua atividade parcial ou totalmente fechada por ordem do poder público (o que, em tempos de pandemia, abrange praticamente todas as atividades econômicas) poderá alegar dificuldades financeiras e suspender os pagamentos.

Só os partidos de oposição foram contrários. "É mais perda para o trabalhador. Está virando uma farra para os patrões nessa pandemia", disse o deputado Rogério Correia (PT-MG). Em condição de anonimato, advogados trabalhistas que atuam para empresas afirmaram ao Valor que a proposta é "absurda", "legaliza o calote" e que prejudica os trabalhadores que aceitaram uma redução nos valores para receber e agora terão que enfrentar uma moratória dessas dívidas.

Ao defender a emenda, aprovada por 315 votos a 135, a deputada Soraya afirmou que a proposta apenas fazia um ajuste e que a suspensão já estava em vigor. Advogados, porém, negaram e disseram que alguns juízes acataram pedidos de suspensão diante da gravidade da situação das empresas, mas foram poucos casos. O Valor tentou contato com Soraya, mas não teve retorno até o fechamento desta edição.

A emenda foi apoiada pelo governo Bolsonaro e pela maioria dos partidos, com exceção dos de oposição. O argumento foi aliviar o caixa das empresas durante a crise econômica. "Vamos apoiar porque realmente melhora o fluxo das empresas que tiveram que ser paralisadas nesse período", defendeu a deputada Adriana Ventura (Novo-SP).

Para o advogado Jorge Matsumoto, sócio trabalhista do Bichara Advogados, as empresas devem tomar cuidado ao utilizar essa permissão, caso seja realmente aprovada, porque mexe com créditos alimentícios e pode ter a constitucionalidade contestada. "Para se precaver disso, a empresa precisa de uma prova bem robusta de que a suspensão foi corretamente aplicada e houve uma situação de grave risco da empregabilidade", orienta.

A versão original da MP era bem menos polêmica, embora sua votação tenha demorado quase dez horas ao longo do dia de ontem por causa das várias emendas feitas pela oposição - todas elas rejeitadas. A proposta estabelece regras para funcionamento do teletrabalho e antecipação de férias e feriados, por exemplo, em decorrência da pandemia do coronavírus. Como a MP está em vigor desde março, a maioria delas já foi aplicada pelas empresas bem antes da votação pela Câmara ocorrer.

O relator, deputado Celso Maldaner (MDB-SC), tentou ampliar as medidas e, num acordo com o governo, incluir pontos da extinta MP 905, como o trabalho aos domingos e feriados sem necessidade de convenção coletiva. Mas o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), vetou após pressão da oposição e o emedebista manteve o texto praticamente inalterado.

A MP permite que o teletrabalho ("home office"), a antecipação de feriados, férias individuais e coletivas, uso do banco de horas, a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho por acordo individual com o trabalhador, sem precisar do aval dos sindicatos. Esse ponto foi criticado pela oposição, com o argumento de que o empregado, neste momento, se submeterá a todas as exigências da empresa para não perder o emprego.

A proposta estabelece regras para funcionamento dessas situações enquanto durar a pandemia da covid-19 e também de outras para aliviar o caixa das empresas. O adicional de 1/3 do salário quando das férias, por exemplo, poderá ser pago até o fim do ano e a troca de 1/3 das férias por abono pecuniário (a "venda" das férias) dependerá do aval do empregador.

Também ficou permitido o diferimento (adiamento) dos depósitos no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) entre março e maio - os deputados não modificaram essa parte e, em junho, os pagamentos já voltarão ao normal. Os valores não pagos nos três meses anteriores serão parcelados de julho a dezembro.

A MP ainda perdeu pontos polêmicos, como o que dizia que a covid-19 não poderia ser considerada doença ocupacional e a limitação de atuação dos auditores fiscais do trabalho durante 180 dias. Ambas foram derrubadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que julgou essas regras inconstitucionais.

O projeto também prevê que as convenções e acordos coletivos de trabalho que vencerem de 22 de março até agosto poderão ser prorrogados por 90 dias a critério do empregador.

___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

MP cria atrito entre Maia e Alcolumbre

Raphael Di Cunto

Renan Truffi 

18/06/2020

 

 

Uma manobra legislativa dos senadores para que os deputados não tivessem a última palavra sobre a Medida Provisória (MP) 936 - que permite a redução de jornada e o corte de salários em até 70% - criou um inédito atrito entre os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), até então atuando completamente afinados. A articulação para que a proposta fosse direto à sanção irritou Maia, que derrubou a sessão de ontem do Congresso que analisaria vetos presidenciais.

Apesar do estresse, o presidente do Senado manteve o envio da MP direto para sanção. Os senadores optaram por impugnar artigos que haviam sido aprovados pelos deputados, alegando que eram "matéria estranha", e não por modificá-la. Desta forma, a proposta não voltou para a Câmara para uma reanálise, como aconteceria normalmente.

Alcolumbre e Maia conversaram sobre o assunto anteontem, logo após a sessão. Interlocutores do presidente do Senado disseram que ficou um "clima ruim", mas que o episódio teria sido superado. Por isso, refutaram a possibilidade de Alcolumbre não enviar o texto da MP para a sanção do presidente Jair Bolsonaro, como é de praxe após a aprovação em definitivo.

Ao Valor, no entanto, Maia mostrou ainda estar descontente. Disse que não concordou com o envio da MP à sanção e criticou a decisão dos senadores de impugnar os artigos em vez de simplesmente modificá-los, o que obrigaria o retorno do projeto para uma nova apreciação dos deputados. "Isso é acabar com o sistema bicameral", respondeu.

O episódio criou uma rusga entre os presidentes das duas Casas, que, até então, vinham atuando bastante alinhados. Evitaram, por exemplo, embates no projeto de socorro financeiro aos Estados e municípios para ajudar no combate à covid-19, apesar de Alcolumbre ter modificado completamente o projeto elaborado por Maia - e, com isso, privilegiado o seu Amapá em detrimento do Rio de Janeiro do colega.

O que mais teria irritado o presidente da Câmara, segundo dois aliados, é que a mudança desfez um acordo que teve ele como fiador para viabilizar a aprovação da proposta, que uniu oposição, independentes e governistas. Ao excluir parte do projeto sem permitir que os deputados recomponham o texto, o Senado atendeu só parte dos deputados que fecharam o acordo e prejudicou os demais.

Além disso, ao tirar trecho que ampliava o crédito consignado (com desconto direto no salário), os senadores disseram que tratariam das modificações que desejam fazer num projeto do senador Otto Alencar (PSD-BA) - o que dará ao Senado o protagonismo e também a palavra final sobre o texto. Relator da MP na Câmara, o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) defende que a Câmara aprove rapidamente um projeto com o conteúdo impugnado e envie ao Senado. "Esse crédito tem juros mais baratos. Ao excluir isso, os senadores obrigaram as pessoas a recorrem a empréstimos mais caros", disse.

Os senadores também "impugnaram" o aumento da jornada de trabalho dos bancários, de seis para oito horas diárias, e que o fornecimento da alimentação para os trabalhadores fosse compreendido como "salário-de-contribuição" e contasse para a Previdência. Os pedidos de exclusão partiram da oposição, mas receberam apoio de partidos como MDB, Podemos e PSD. O argumento foi de que as alterações de mérito, com a volta da MP à Câmara, atrasariam a sanção e prejudicariam os setores que estão com os trabalhadores suspensos, já que o prazo de dois meses previsto na MP acabou há alguns dias. O Congresso permitiu que o governo prorrogue por mais dois meses, mas isso só será possível após a sanção.

Aliados de Maia disseram ao Valor que a briga deve ser superada porque a crise com o presidente Jair Bolsonaro fará ambos evitarem a todo custo uma disputa entre as duas Casas. Afirmam que o presidente da Câmara de fato ficou muito irritado, mas não deve reagir mais do que com o cancelamento da sessão do Congresso - ele marcou sessão da Câmara para o mesmo horário e, pela primeira vez em semanas, começou pontualmente para evitar a votação dos vetos.