Valor econômico, v.21, n.5024, 18/06/2020. Política, p. A14

 

“Não podemos nos igualar aos bolsonaristas”

Daniela Chiaretti 

César Felício 

18/06/2020

 

 

A ex-senadora Marina Silva, que é uma das articuladoras das frentes amplas em defesa da democracia, diz que não é hora de ir para as ruas, o maior vetor de transmissão do coronavírus. “O principal líder desta estratégia suicida é o presidente Bolsonaro. “Não podemos nos igualar aos bolsonaristas”.

A ex-ministra de Meio Ambiente do governo Lula critica a atitude do PT em resistir a apoiar o impeachment do presidente Bolsonaro e agora querer ditar o ritmo dos movimentos de oposição. Para ela, o PT ficou preso à narrativa de golpe na queda da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016. “Acreditar que Bolsonaro tenha algum bom-senso para fazer um pedido de renúncia em nome da democracia, da saúde pública ou qualquer outro princípio elevado, é não entender o que significa este governo.”

Os movimentos pela democracia juntam pessoas da centro-esquerda, esquerda, centro-direita e direita democrática em frentes sem projetos eleitorais com três pilares: preocupação com saúde pública, medidas de proteção de caráter econômico e social e defesa da democracia. A questão econômica não pode ficar de fora destas iniciativas. “Ninguém pode se contaminar por um prato de comida, senão é hipocrisia”.

Em sua visão, Bolsonaro “está indo para o tudo ou nada apostando no caos social para justificar uma intervenção autoritária”.

No meio ambiente, diz, o Brasil está isolado no momento em que o país mais precisa de parcerias. “Somos quase um país proscrito”. O desmatamento em 2020 deve ser maior do que em 2019, porque a fiscalização foi desmontada e o Exército não tem expertise de fiscalização. Ela diz que há estímulo do governo de permitir a ocupação de terras públicas e compara o cenário ao escândalo do “Petrolão” - diz que está em curso “uma espécie de ‘Florestão’”.

A seguir, os principais temas da entrevista virtual que a ex-senadora concedeu ao Valor:

Três crises

O Brasil talvez seja o único lugar do mundo em que se combinam três graves crises: de saúde pública, econômica-social e político-institucional. Temos a previsão do Banco Mundial de encolhimento do PIB em 8%. Dados do governo apontam para mais de 6%. Há previsão de aumento no número de pobres em 48 milhões e 30 milhões de desempregados. É um cenário terrível para um país que se situa dentro de uma crise mundial em que todos estão tendo dificuldades. O governo não só não consegue liderar um esforço unido com governadores, prefeitos, academia, formadores de opinião, Congresso e Judiciário para darmos conta da pandemia, mas ainda cria problemas para a retomada da economia e em relação à nossa democracia, criando uma instabilidade político e institucional.

Diálogos em curso

Pensar em uma frente, nesta situação, é o esforço que o Brasil espera das lideranças políticas, dos partidos e de todos os que têm compromisso com a vida, a dignidade e a democracia. Esta frente junta pessoas da centro-esquerda, esquerda, centro-direita e direita democrática que sabem separar o momento que estamos vivendo de disputas eleitorais. Há um movimento entre Rede, PSB, PDT, PV, Cidadania. Tenho dialogado com o ex-presidente Fernando Henrique e o ex-ministro Ciro Gomes.

Discordância com o PT

Existem os que não estão dispostos a fazer autocrítica dos erros que cometeram, que acham que se não for embaixo do guarda-chuva do PT não existe esforço nenhum. Discordo desta visão. O que está posto diante de nós é maior do que caprichos políticos de qualquer que seja o espectro ideológico. O PT foi um dos últimos a se declarar em relação ao impeachment porque estava preso à narrativa de que a cassação da Dilma pelo crime de responsabilidade em relação à questão fiscal era um golpe. Como queria permanecer “coerente” ficou refratário em concordar com o pedido de impeachment de Jair Bolsonaro. Acreditar que Bolsonaro tenha algum bom-senso para fazer um pedido de renúncia em nome da democracia, da saúde pública e de qualquer outro princípio elevado é não entender o que significa este governo.

Ativismo autoral

Está surgindo no mundo e no Brasil o ativismo autoral. Talvez seja a única chance de os partidos poderem se reinventar e deixar de achar que os movimentos têm que ser dirigidos por partidos, sindicatos ou líderes carismáticos. Neste momento, o esforço maior vem da sociedade. Já temos mais de 300 mil pessoas que assinaram o manifesto “Juntos pela Democracia”, outros milhares no “Somos 70%” e no grupo dos que fizeram o “Basta” de atentados à Constituição, às leis e à autonomia dos poderes. O movimento está acontecendo.

Não é hora de ir para a rua

Precisa ficar muito claro para os que defendem a democracia, a vida e a dignidade humana via recuperação da economia que não devemos ir para a rua. É o maior vetor de contaminação. O principal líder desta estratégia suicida é o presidente Bolsonaro. As nossas estratégias de fortalecer o movimento são as que estão em curso, as formas alternativas de demonstrar o descontentamento com este governo e a aprovação dos esforços pelo seu afastamento seja pelo impeachment, pela cassação da chapa Bolsonaro-Mourão no TSE ou pelo processo no Supremo com a relatoria do ministro Celso de Mello. Temos três frentes importantes que Bolsonaro mesmo criou para ser interditado e parar de prejudicar o Brasil e os brasileiros.

Esta unidade se dá em cima de três colunas: a defesa da vida com isolamento e cuidar de quem está contaminado; da dignidade humana, pensando que o isolamento precisa ser financiado, é preciso que haja renda básica emergencial e ajuda a pequenas e médias empresas; e a defesa da democracia.

A questão econômica

É democrático que alguns possam ficar em isolamento social protegendo sua saúde e vida e outros tenham que ir se contaminar por um prato de comida? Vamos ser coerentes, senão é hipocrisia. A unidade da frente não pode ser ôca. Se estamos defendendo a democracia, ela pressupõe o respeito à dignidade humana, o respeito para que as pessoas possam ter as mesmas condições de se proteger. Uma economia ativa não é só aquela que salva as grandes empresas e o sistema financeiro. Os vasos de microvascularização são os pequenos e médios negócios. É isso que a Alemanha, o Reino Unido, a França e até os Estados Unidos entenderam. Não há democracia se só uns podem ter o que comer, proteger sua saúde e se dar ao direito de ter isolamento social.

A luta se fragiliza sem ir às ruas?

O que fragiliza qualquer luta política é a contaminação em massa de brasileiros em um contexto em que já temos mais de 46 mil mortos e que estamos chegando a um milhão de pessoas contaminadas, com subnotificação e em que ainda não chegamos ao pico da pandemia. Tudo o que a sociedade não precisa é que, neste momento, as lideranças políticas e os partidos sejam iguais ao Bolsonaro, sendo vetores de contaminação e de mais colapso para o sistema de saúde e o sistema produtivo.

O Brasil e os EUA estão com esta estratégia perigosa para a saúde, a economia e o processo democrático. Nenhuma democracia consegue se estabilizar em um cenário de convulsão social.

Aposta de Bolsonaro

O presidente Bolsonaro não tem competência para governar em uma democracia. Só conseguiria governar se for com a imprensa amordaçada, a oposição calada, os cientistas intimidados, os poderes sendo desagregados. Está indo para o tudo ou nada apostando no caos social para justificar uma intervenção autoritária do seu devaneio de poder. Estamos há um mês sem ministro da Saúde, no pior momento da saúde pública desse século. Quando o presidente fica fazendo escaramuças com seus apoiadores contra o Supremo, o Congresso, a mídia, os governadores, os prefeitos, o bom senso, isso é o quê? Está apostando no caos para justificar uma ação autoritária.

O perigo das armas

Ele vai criando subterfúgios para que as pessoas possam se armar, cria dificuldade para o rastreamento e facilidade para terem acesso a mais munição. É uma situação altamente perigosa.

O gesto dos militares

Espero que os militares brasileiros façam o mesmo que os americanos fizeram. Que este gesto de pedir desculpa ao povo brasileiro por estarem sendo confundidos com quem quer afrontar Congresso, Supremo e calar a imprensa aconteça também no Brasil.

Governadores à própria sorte

Especialistas têm dito que esse não é o momento para relaxar as medidas de isolamento social. Os governadores, no início, tiveram uma postura que salvou milhares de vidas. Precisam se manter coerentes com aquela postura original. O governo Bolsonaro jogou todas as fichas para intimidar os governadores que foram ficando entregues à própria sorte, assim como o povo de seus Estados.

O Brasil isolado

A União Europeia está trabalhando na direção de que os investimentos sejam feitos para a transição de uma economia de baixo carbono. Se Trump perder as eleições, EUA e Europa irão se juntar e vamos ter uma forte inflexão nessa direção, inclusive com a China. O Brasil tem que se ajustar rapidamente para não ficar trancado do lado de fora. Lamentavelmente, já estamos isolados. Hoje somos quase um país proscrito. Ninguém quer ficar do lado do Bolsonaro. Sugeri: não confundam o povo brasileiro com o governo. Não confundam todo o agronegócio brasileiro com aqueles que querem fazer a MP da grilagem.

Temporada de incêndios

Já temos um desmatamento, segundo os dados do Inpe, equivalente ao que tivemos em 2019 e estamos no começo de junho. Significa que vamos ter desmatamento incomparavelmente maior ao que tivemos no ano passado. Com uma diferença: em 2019 pelo menos a gente tinha o Ibama. O Exército não tem expertise para fazer fiscalização, comando e controle de questões ligadas a crimes ambientais. O vice-presidente Hamilton Mourão diz que vai lançar um plano de “ambientalismo de resultados”, e é preciso que tenha muita pressa porque até agora o resultado é mais desmatamento, violência, invasão, grilagem, roubo de madeira, mineração ilegal.

Florestão e Petrolão

O governo estímula a ocupação ilegal de áreas públicas da União. É algo semelhante ao “Petrolão”, quando havia desvio de dinheiro da Petrobras para perpetuar um grupo no poder. O que está acontecendo em relação à ocupação de áreas na Amazônia, com exploração de minérios, madeira, grilagem, é uma espécie de “florestão”. É o roubo de terras públicas para que igualmente um grupo se perpetue no poder fidelizando bases políticas e partidárias. É o governo que tenta institucionalizar o roubo de recursos naturais públicos com uma medida provisória dando titulação para quem ocupou ilegalmente até 2018.