Correio braziliense, n. 20863 , 06/07/2020. Cidades, p.20

 

Proteção para alguns, prejuízo para outros

Ana Maria da Silva*

06/07/2020

 

 

CONSUMIDOR DIREITO + GRITA » Medida Provisória nº 948 resguarda empresas de cultura e de turismo no caso de cancelamento ou adiamento de viagens e eventos, mas, para clientes e usuários, texto fere as relações de consumo

Não é novidade que muitos eventos previstos para ocorrer neste ano foram cancelados, adiados ou estão em situação indefinida. Segundo a Associação Brasileira dos Promotores de Eventos (Abrape), cerca de 51,9% das apresentações planejadas ficaram prejudicadas com a pandemia. No turismo, não tem sido diferente. Diversos países fecharam suas fronteiras, e os voos ficaram cada vez menos frequentes, afetando serviços e reservas.

Com o intuito de atender aos anseios de ambos setores e criar soluções para o momento de incerteza, o governo federal publicou, em 8 de abril, a Medida Provisória (MP) nº 948. O texto dispõe sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos de modo a desobrigar o reembolso, por parte dos fornecedores, dos valores pagos pelos consumidores por serviços não prestados em razão da pandemia.

Segundo a norma, porém, deverá haver remarcação ou disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas e produtoras. O reagendamento deve ser feito em até 12 meses após o encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6/20. Também será possível acertar outra forma de compensação do consumidor, desde que seja aceito por ele.

Todavia, em algumas situações serão inviáveis as alternativas propostas. É o caso do aposentado Murillo Eduardo Fernandes da Silva Porto, 67 anos, que comprou duas passagens para Portugal. De acordo com Murillo, o último trecho da viagem era da Espanha para Portugal, cuja fronteira estava fechada. O aposentado afirma que sabia da situação dos países, mas, como a empresa aérea vendeu as passagens, acreditou que o voo seria realizado. Porém, dias antes do embarque, a reserva foi cancelada. “Quando eu comecei a ler sobre o fechamento das fronteiras, já havia adquirido as passagens. Entrei no site da companhia e vi que não havia nenhum voo programado para a data que eu havia selecionado, assim como os dias subsequentes. Foi quando percebi que comprei uma passagem para uma viagem que não aconteceria”, lamenta.

Para o aposentado, a empresa aproveitou o momento de pandemia para se capitalizar, apoiada pela MP nº 928. “Eles vendem as passagens, cujos voos sabem que não vão acontecer. Quando a data se aproxima, cancelam o voo, ficam com o dinheiro arrecadado e dizem que vão devolver após um ano, se é que vão”, reclama Murillo.

Segundo ele, a MP é um desserviço para o consumidor. “Nessa brincadeira, eu perdi R$ 16 mil. Quando vi que corria risco de cancelamento, enviei vários e-mails, aos quais não obtive resposta e, quando tinha, eram eles passando a responsabilidade para a agência de viagem”, conta. “Eu precisei arrumar dinheiro para comprar novas passagens. Mas não é só a questão do valor que eu perdi. Passei pelo desgaste dos e-mails sem resposta também. É um dano moral muito grande. Eles estão matando o sonho de centenas ou talvez milhares de brasileiros, como eu”, critica Murillo.

Resistência

Para Maria Luisa Nunes da Cunha, advogada especialista em direito civil e consumidor, a MP buscou, diante da adversidade do período, instituir um equilíbrio entre as partes afetadas pelos serviços de turismo e entretenimento. Em tese, não haveria semelhança com a norma institucional ou o Código de Defesa do Consumidor (CDC), mas ela contesta. “Na prática, o que se tem verificado é o desequilíbrio ocorrido, pendendo a balança para o lado mais reconhecidamente vulnerável no mercado de consumo, que é o consumidor”, avalia.

“Os usuários têm encontrado bastante resistência em obter o ressarcimento dos valores pagos pelos serviços cancelados. Não à toa que os sites especializados em reclamações registram aumento nesse tipo de demanda”, ressalta. Segundo Maria Luisa, é certo que o Estado deve estar atento ao impacto da pandemia nos setores econômicos, mas há outros campos que precisam de atenção. “O consumidor também tem sido fortemente impactado pela crise gerada com o desemprego, que alcança a casa de 5 milhões de postos de trabalho”, afirma.

Atualmente, a MP segue em tramitação na Câmara dos Deputados e, em 8 de junho de 2020, teve a vigência prorrogada por 60 dias. A norma conta com 279 emendas ao texto original. Maria Luisa reforça que se espera que o texto original seja aprimorado e amplamente debatido nas duas Casas do Congresso Nacional. “Esperamos que, dessa forma, as regras instituídas sejam aplicáveis na prática e tenham a segurança jurídica esperada de proteção ao consumidor, sem olvidar de garantir a saúde financeira das empresas do setor e a manutenção do emprego”, ressalta a advogada.

O consumidor que se sinta lesado deve buscar os órgãos especializados de proteção e defesa do consumidor ou recorrer ao Poder Judiciário para dirimir as questões relativas aos litígios decorrentes do cancelamento de serviços contratados, de reservas e de eventos, incluindo shows, espetáculos, cinemas, teatros e ingressos adquiridos em plataformas digitais, em virtude da covid-19.

* Estagiária sob supervisão de Guilherme Goulart

Atenção

A especialista em direito civil e do consumidor Maria Luisa Nunes da Cunha reforça pontos que os consumidores devem ficar atentos quanto à Medida Provisória nº 948:

» Para desobrigar a isenção de custos, taxa ou multa, o consumidor deverá solicitar a remarcação do serviço no prazo de 90 dias a contar da entrada em vigor da medida, em 8 de abril de 2020

» Nessa hipótese, a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados deverá ser realizada no prazo de 12 meses, contado do fim do estado de calamidade, e desde que sejam respeitados, como previsto na MP, a sazonalidade e os valores originalmente contratados. Ou seja, se adquiriu um pacote ou uma tarifa para baixa temporada, não poderá remarcar para alta temporada, a menos que complemente o valor

» Caso opte por receber o ressarcimento do serviço cancelado, a empresa contratada estará obrigada a restituir, em até 12 meses, contados do fim da pandemia, o valor ao consumidor, que sofrerá atualização monetária pelo IPCA-E

» Em caso de cancelamento do serviço e parcelamento de compra, o consumidor, caso não consiga o cancelamento das parcelas vincendas, poderá recorrer ao Judiciário