Valor econômico, v.21, n.5021, 15/06/2020. Artigos, p. A10

 

Reforma tributária em tempo de crise

Ernesto Lozado 

Melina Lukic

15/06/2020

 

 

Criação de um IVA será um dos maiores legados que um governo ou o Congresso poderá deixar para o país

Retomar o tema da reforma tributária quando a economia global adentra em uma grave crise provocada pela pandemia da covid-19 não deixa de ser uma tarefa difícil. Ao mesmo tempo, porém, o tema é sem dúvida oportuno, pois há que se ter estratégias para a saída da crise e para assegurar a capacidade produtiva e a tração econômica do país.

A retomada do crescimento no período pós-coronavírus dependerá de fatores críticos. No Brasil, serão necessárias políticas de redução da dívida pública para reequilibrar o orçamento público federal, recuperar o teto fiscal e estimular investimentos privados nacionais e estrangeiros. A retomada do crescimento não ocorrerá caso não se edificar, ainda neste ano, a pedra angular do crescimento acelerado, o que passa inevitavelmente por reformular o caótico sistema tributário nacional.

A reforma tributária em discussão tem por objetivo principal simplificar e eliminar a cumulatividade e as distorções dos tributos incidentes na cadeia produtiva de bens e serviços. O Brasil tem o pior sistema tributário do mundo pela sua inconsistência, cumulatividade e litigância envolvendo os fiscos e contribuintes.

O imposto sobre o valor agregado (IVA), tributa somente o valor adicionado em cada fase da produção e comercialização e o seu ônus econômico recai sobre o último elo da cadeia produtiva - o consumidor final - que é quem efetivamente paga o tributo. Nada mais simples e eficaz. A sociedade ganha nesse novo sistema tanto pela simplificação do processo de arrecadação tributária como pela redução dos preços a longo prazo.

Há no Brasil duas linhas de propostas de IVA em discussão. A mais conhecida é a que incorpora vários impostos da União, Estados e municípios num único tributo compartilhado: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Nesta linha, há duas propostas semelhantes no Congresso Nacional: os Projetos de Emenda Constitucional no. 45 e 110.

Mas há que se levar em conta que as propostas de IVA único nunca foram adiante no Brasil. Mesmo que as propostas apresentem, teoricamente, uma sistemática preferível em termos de simplificação do sistema, fato é que não são nada pragmáticas do ponto de vista de aprovação e implementação.

As propostas de IVA dos governos de FHC e Lula não foram aprovadas principalmente em razão das crises internacionais de seu tempo. Na PEC 175/95, o governo FHC retirou o seu apoio para a aprovação da reforma em virtude do contexto incerto trazido pelas crises asiáticas e russa. No governo Lula, a PEC 233/08 teve o mesmo destino, desta vez pela falta de apoio de alguns Estados em razão da crise financeira de 2008. As crises econômicas, nestes casos, acentuaram ainda mais as sempre presentes divergências entre os entes federativos.

Ao perceber o fatídico destino político das PECs 45 e 110, ao qual agora soma-se a crise da covid-19, o governo federal em diversas ocasiões demonstrou preferência pela adaptação das propostas de IBS em uma proposta de IVA Dual. Uma estratégia hábil e sensata.

Há vários aspectos políticos e institucionais que embasam a reforma tributária do IVA Dual, proposta inicialmente pelo Ipea em 2017. Diversas são as razões pelas quais este modelo seria mais adequado para o Brasil: o seu aspecto pragmático do ponto de vista da aprovação política e implementação administrativa e sua perfeita adequação ao sistema federativo brasileiro.

A estrutura federativa brasileira não é cooperativa, mas competitiva. A União nunca dispôs de recursos fiscais suficientes para assegurar a compensação da perda de receitas dos entes federados. A consequência é a necessidade de um período de transição longo para que os recursos sejam transferidos para os Estados e municípios de destino, que varia de 8 a 50 anos nas propostas das PECs 110 e 45, respectivamente.

A Índia e o Canadá - países federativos como o Brasil - realizaram reformas tributárias para implementação de IVA assegurando a manutenção de receitas das províncias, pois os governos centrais dispunham de receitas para assegurar tal transição.

Na Índia, quando Manmohan Singh liderou o processo da reforma tributária naquele país, preparou o processo de transição dez anos antes, construindo um fundo de reservas para manter as receitas das províncias após a mudança para o IVA único. No Brasil, essa possibilidade atualmente inexiste.

Muitos especialistas e políticos têm cogitado que o caminho mais viável seria transformar as propostas em trâmite no congresso Nacional em uma proposta de IVA-Dual. O IVA-Dual seguiria as mesmas premissas técnicas das demais propostas, tal como base ampla e um regime único de tributação para todos os setores. No entanto, a principal diferença é que no IVA-Dual haveria a implementação de dois IVAs paralelamente: um IVA da União e outro dos Estados/municípios. Daí a denominação dual.

No âmbito federal, se unificam o PIS/Cofins e o IPI, e este último seria transformado em um imposto seletivo. No âmbito dos Estados e municípios se manteria a autonomia dos entes e se unificaria o ICMS e ISS. O IVA Estadual/municipal adotaria o princípio do destino, com aplicação da alíquota do destino e receitas destinadas ao Estado e município de destino da mercadoria ou serviço.

Cabe lembrar que essa reforma será implementada em dois níveis: um primeiro IVA na União e, posteriormente ou concomitantemente, um IVA no nível dos Estados e municípios. Trata-se de uma reforma modular em níveis federativos diferentes. Concebe-se um grupo gestor para a administração da arrecadação e distribuição das receitas para os entes estaduais e municipais.

A reforma tributária feita por meio da criação de um IVA, seja qual for o modelo adotado, certamente será um dos maiores legados que um governo ou o Congresso Nacional poderá deixar para o país. A questão, no entanto, é que não podemos perder mais dez anos tentando encontrar um denominador comum entre os entes federativos. O IVA-Dual é o modelo que diminui o conflito federativo e permite uma adoção mais rápida e pragmática desta reforma tão imprescindível ao país.