O Estado de São Paulo, n.46241, 25/05/2020. Economia, p.B3

 

EUA decidem barrar quem passou pelo Brasil

Beatriz Bulla

25/05/2020

 

 

Países aliados e vizinhos tomam medidas para isolar o País e se proteger do contágio

Ação. Medida de Trump barra viajantes que estiveram no Brasil nos últimos 14 dias

A falta de uma estratégia do governo brasileiro para conter o avanço da pandemia do novo coronavírus faz com que vizinhos e aliados tomem medidas para isolar o País e se proteger do contágio. O governo americano anunciou ontem a proibição da entrada de viajantes estrangeiros provenientes do Brasil. Entre os vizinhos, o presidente da Argentina (terceiro maior parceiro comercial do Brasil), Alberto Fernández, disse ver o Brasil como um risco à região, enquanto o Uruguai reforçou controles sanitários na fronteira e o Paraguai tenta conter a entrada de brasileiros.

A intenção de limitar passageiros vindos do País vinha sendo mencionada pelo presidente americano, Donald Trump, desde o final de abril. Na sexta-feira, quando a Organização Mundial da Saúde classificou a América do Sul como novo epicentro do vírus, a Casa Branca e o Departamento de Estado americano concordaram em oficializar a restrição, como antecipou o Estadão.

Trump é considerado o principal aliado internacional do presidente Jair Bolsonaro e tem evitado críticas abertas ao brasileiro, mas deixou claro nas últimas semanas que não pouparia o País ao dizer que não queria pessoas “entrando e infectando” o povo americano. A medida anunciada barra estrangeiros que estiveram no Brasil nos últimos 14 dias. A restrição passa a valer a partir das 23h59, no horário de Nova York, do dia 28 de maio, e não tem prazo para terminar. Ainda podem entrar no país aqueles que possuem residência permanente nos EUA, além de cônjuges, filhos e irmãos de americanos e de residentes permanentes.

Atualmente, há apenas 13 voos semanais em operação entre os dois países, contabilizando todas as companhias aéreas. Antes da pandemia, a Latam, sozinha, tinha 49 voos semanais. Com a restrição, as empresas podem continuar a operar as rotas, mas os passageiros que se encaixem na medida não poderão ingressar nos EUA. A tendência, portanto, é que o número de voos seja ainda mais reduzido.

Na Europa, a desconfiança com o governo Bolsonaro vem desde o ano passado, depois que o presidente entrou em choque com os líderes da França e Alemanha no meio da crise de imagem causada pela alta nos incêndios na Amazônia.

Diferença. Americanos, no setor público e privado, afirmam que Trump também não foi o melhor líder na condução da crise, ao minimizar o vírus no início do ano e postergar o início de uma resposta coordenada com os Estados. Ao traçar a comparação com o Brasil, no entanto, analistas têm apontado que ao menos Trump se mantém fiel ao corpo técnico que o orienta, enquanto Bolsonaro perdeu dois ministros da Saúde em um mês.

“As pessoas precisam estar preparadas para voltar a trabalhar porque se sentem razoavelmente seguras, não porque estão desesperadas e não têm dinheiro”, afirma Thomas Shannon, que foi o terceiro na hierarquia do Departamento de Estado até 2018 e embaixador dos EUA no Brasil de 2010 a 2013. “O que me preocupa é que temos governos federais que vão reabrir com base no desespero, e não com base na confiança.”

Acordo comercial. A medida de restrição do governo Trump acontece num momento em que os dois países negociam um novo acordo comercial, que não deve envolver mudanças de tarifas. O encarregado de negócios da Embaixada do Brasil nos EUA, Nestor Forster, diz que até o fim do ano é possível fechar um pacote de facilitação de negócios. “É um grande desafio conseguir manter a agenda funcionando com as restrições de encontro presencial, mas posso dizer que temos conseguido até de forma surpreendente.”

Para Shannon, a onda de desaceleração da globalização e o encurtamento das cadeias de produção, que devem surgir como efeito da pandemia, poderiam levar Brasil e EUA a estreitar relações comerciais. Nesse sentido, ele faz elogios ao ministro da Economia, Paulo Guedes. “Ele ainda está trabalhando para abrir a economia, isso é importante.”

O ex-embaixador reconhece, no entanto, que a perspectiva do avanço comercial pode esbarrar no protecionismo de Trump e no cenário eleitoral, que tende a ser turbulento no segundo semestre nos EUA. A crise política e econômica no governo Bolsonaro gera um outro impasse: a resistência do Congresso americano, que é crítico ao brasileiro.

“Os EUA vão passar pela crise. Acho que o Brasil vai também, mas será mais difícil, porque não está no mesmo estágio de desenvolvimento econômico e político”, diz Melvin Levistky, ex-embaixador dos EUA no Brasil e hoje professor na Universidade de Michigan.

‘Passar pela crise’

“Os Estados Unidos irão passar pela crise. Eu acho que o Brasil vai também, mas será mais difícil, porque o Brasil não está no mesmo estágio de desenvolvimento econômico e político.”

Melvin Levistky

EX-EMBAIXADOR DOS EUA NO BRASIL

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Imagem do País tem desgaste inédito

Oliver Stuenkel

25/05/2020

 

 

A atitude negacionista do governo Bolsonaro frente a pandemia e ao número cada vez maior de infectados e mortes no Brasil virou destaque global e consolida a percepção no exterior de um País à deriva, cujo presidente opera em uma realidade paralela.

O debate internacional sobre o Brasil é marcado pelo espanto do por que um líder democraticamente eleito ativamente incentivaria manifestações pró-governo enquanto viola e critica medidas de distanciamento social adotadas por países ao redor do mundo, a despeito da orientação ideológica dos seus governos.

Da mesma forma, gera perplexidade a razão pela qual ele trocaria seu ministro da Saúde duas vezes por seguirem as recomendações da OMS com relação à pandemia. O desgaste mais recente na imagem do País apenas confirma uma tendência visível desde a eleição de Bolsonaro, em outubro de 2018, e seus embates internacionais recorrentes, entre eles, a má gestão da crise diplomática causada pelos incêndios na Amazônia.

Esses episódios causaram uma erosão inédita do soft power brasileiro, construído por um País que possui um dos corpos diplomáticos mais respeitados do mundo e já servia de modelo em temas como Saúde Pública e teve lideranças globais na área do Meio Ambiente. A política externa de Bolsonaro transformou o Brasil em um pária que nem sequer participa dos principais debates internacionais, seja sobre a pandemia, mudança climática, seja como fortalecer o sistema multilateral.

Trata-se de uma guinada histórica para um país que tradicionalmente se orgulhava do seu papel diplomático altamente respeitado e construtivo, e da sua ausência de inimigos.

COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DA ESCOLA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA FGV