O globo, n. 31701, 23/05/2020. País, p. 6

 

O governo sem filtros

Marcos Corrêa

23/05/2020

 

 

Presidente: 'armar o povo' para resistir ao isolamento Salles propõe 'passar a boiada' durante pandemia No Alvorada, alegação de intenção de prejudicar filhos
O vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, citada por Sergio Moro como prova da interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, mostra o presidente e seus ministros atacando políticos e instituições, como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, e em ofensiva por armas e desmatamento. A gravação desmonta a versão de Bolsonaro de que ele olhou para o general Augusto Heleno ao afirmar "vou interferir": ele se vira na direção do ex-ministro da Justiça. Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, responsável pela segurança da família presidencial, estava do lado oposto. No vídeo liberado pelo ministro Celso de Mello, do STF, o presidente afirma que tem um "sistema particular" de informações, o que é ilegal. Entre palavrões e ofensas a governadores e prefeitos que adotaram medidas de isolamento social para conter a expansão da Covid-19, Bolsonaro diz que quer "armar o povo" para que possa resistir a um

prefeito"que deixa todo mundo dentro de casa". No dia seguinte à reunião, portaria elevou a quantidade de munições que civis podem comprar. O ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, disse que o governo deveria aproveitar o "momento de tranquilidade"com a imprensa,"que só fala de Covid",para"passar a boiada"em sua pasta, alterando a legislação. Celso de Mello oficiou a seus pares para que "possam, querendo, ado

tar as medidas" em relação ao ministro da Educação, Abraham Weintraub, que chamou os ministros do STF de "vagabundos" e defendeu a prisão deles. Bolsonaro afirmou, na porta do Alvorada,temer que seus filhos possam ser alvo de "provas plantadas", o que teria sido revelado a ele por "amigos policiais".

Aberto por determinação do decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, o HD externo número 195.1992, patrimônio da Presidência da República, foi tornado público ontem como parte da investigação que pretende descobrir se o presidente Jair Bolsonaro tentou intervir politicamente na Polícia Federal, como denunciou o ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Gravada no dia 22 de abril, quando o Brasil registrava 45.757 casos do novo coronavírus e 2.906 mortes, a reunião ministerial se soma a outros indícios que compõem o inquérito nas mãos da Procuradoria-Geral da República.

Para além dos trechos diretamente relacionados à tentativa de interferência na PF, a divulgação do vídeo expôs outras faces do governo. Bolsonaro chegou a defender que a população se arme para reagir a medidas de isolamento social, enquanto o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, advogou que se aproveite as atenções voltadas à pandemia para afrouxar a legislação ambiental. Nos trechos que foram divulgados, pouco foi falado sobre como reduzir o índice de contágio que seria praticamente multiplicado por dez em pouco tempo.

 SISTEMA PARALELO

Exatamente um mês depois, a reunião sigilosa, como todas do mais alto escalão do governo federal, foi divulgada quase na íntegra, com exclusão somente de trechos que citam outros países, principalmente a China, para não aprofundar ainda mais a crise política pela qual o país passa em plena pandemia. As 2.906 mortes agora são 21.048, e não há indícios de que a voracidade do vírus tenha atingido seu ápice. A irritação do presidente ao não receber as informações que gostaria dos órgãos de inteligência foi nítida nas imagens divulgadas ontem, mas um elemento que havia ficado de fora das primeiras transcrições divulgadas chamou a atenção:

— Sistemas de informações o meu funciona. O meu particular funciona. Os ofi... que tem oficialmente, desinforma. E voltando ao... ao tema: prefiro não ter informação do que ser desinformado por sistema de informações que eu tenho —disse o presidente, sem explicar como mantém um sistema de dados extraoficial. Naquela reunião, entre dezenas de palavrões que mostram sem filtros a forma como Bolsonaro lidera seus subordinados dentro do Planalto, a emergência do coronavírus foi vista como ameaça e oportunidade. Contrário às medidas de isolamento adotadas pela quase totalidade dos países que enfrentam a doença responsável por mais de 337 mil mortes no mundo, o presidente conclamou seus ministros a defender o armamento da população: —Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua —afirmou o presidente, acrescentando. — É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado. E que cada um faça, exerça o teu papel. Se exponha. Aqui eu já falei: perde o ministério quem for elogiado pela Folha ou pelo GLOBO! Pelo Antagonista! Né? Então tem blogs aí que só tem notícia boa de ministro. Eu não sei como! O presidente... As críticas ao trabalho da imprensa foram constantes na reunião. O presidente Bolsonaro inclusive ordenou que seu primeiro escalão a excluir a imprensa de suas rotinas:

— Tem que ignorar esses caras, 100%. Senão a gente não, não vai para frente.

 LIBERDADE E CADEIA

Como a atenção da imprensa está concentrada na pandemia, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, viu uma oportunidade. Com o país prestando atenção em máscaras, álcool em gel, UTIs, cemitérios e na crise política entre Bolsonaro e seu ex-ministro mais popular, o ministro disse: —Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. Apesar de o presidente ter usado discurso em defesa da liberdade, inclusive contra medidas de isolamento, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, disse que a solução passa por prisões. — Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF. Para Celso de Mello, a fala "põe em evidência, além do seu destacado grau de incivilidade e de inaceitável grosseria, que tal afirmação configuraria possível delito contra a honra (como o crime de injúria)" .

Horas antes de as capitais do país registrarem mais panelaços e gritos pelas janelas contra o Bolsonaro, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, divulgou nota criticando um pedido de parlamentares, encaminhado a Celso de Mello, para a apreensão do telefone celular de Bolsonaro: "Poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional".

"Sistemas de informações o meu funciona. O meu particular funciona. Os ofi... que têm oficialmente, desinforma. E voltando ao... ao tema: prefiro não ter informação do que ser desinformado por sistema de informações que eu tenho"

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Jair Bolsonaro, presidente
"Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado!" _

Jair Bolsonaro, ao criticar medidas de isolamento impostas por governos locais

"Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas" _

Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente

"Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF (...) Eu vim aqui pra lutar. E eu luto e me ferro. Eu tô com um monte de processo aqui no Comitê de Ética da Presidência. Eu sou o único que levou processo aqui." _

Abraham Weintraub, ministro da Educação, ao reclamar de Brasília e do que considerou privilégios

"O Gabinete de Segurança Institucional alerta as autoridades constituídas que tal atitude é uma evidente tentativa de comprometer a harmonia entre os poderes e poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional" _

Augusto Heleno, do GSI, sobre pedido de apreensão de celular de Bolsonaro

"Sistemas de informações o meu funciona. O meu particular funciona. Os ofi... que tem oficialmente, desinforma. E voltando ao... ao tema: prefiro não ter informação do que ser desinformado por sistema de informações que eu tenho"

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Jair Bolsonaro,