Valor econômico, v.21, n.5019, 11/06/2020. Brasil, p. A4

 

Dados discrepantes dificultam entendimento, dizem especialistas

Leila Souza Lima

Fabio Murakawa

11/06/2020

 

 

A existência de vários levantamentos diferentes sobre o número de casos de covid-19 no Brasil é uma iniciativa válida na direção da transparência, mas representa uma dificuldade para o entendimento da situação real, dizem especialistas ouvidos pelo Valor. O ideal seria que houvesse uma fonte confiável responsável pela tabulação de informações, coisa que deixou de ocorrer com a suspensão da divulgação de dados pelo Ministério da Saúde - agora retomada.

Para Karina Ribeiro, professora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, o excesso de fontes com dados discrepantes "confunde o cidadão". Karina é também pesquisadora do Observatório Covid-19 BR, que reúne mais de 50 especialistas.

Nos últimos dias, diferentes canais foram lançados com o intuito de subsidiar equipes técnicas de saúde, gestores públicos e a população com números que retratem a curva de transmissão do coronavírus no país, depois que o governo deixou de publicar ou passou a atrasar a publicação dos dados. Entre essas iniciativas está o um consórcio entre "O Globo, "Extra", G1, "Estado de S. Paulo", Folha de S.Paulo" e UOL, que levanta as informações junto aos órgãos estaduais de Saúde. O Valor também publica os dados do consórcio (ver reportagem Ministério aponta 1.272 mortes em 24 horas).

Uma das plataformas que fornecem informações sobre óbitos por coronavírus - o portal de Transparência do Registro Civil, iniciativa independente dos Cartórios de Registro Civil do Brasil - baseia-se, no entanto, em documento indiscutível: a Declaração de Óbito (DO), que permite legalmente o registro. Os números do site, porém, são sempre menores que os reportados por municípios, Estados e pelo Ministério da Saúde, devido aos prazos legais para lavrar o documento final.

Para Karina, apesar da confusão as diferenças não causam prejuízo, pois do ponto de vista científico estão aproximadas e fornecem, se o abastecimento de dados for diário, regular e padronizado, a ideia da evolução da pandemia. "Eles mesmos explicam no portal de Transparência a razão de 'atraso'. A família ou responsável por essa tarefa tem até 24 horas após o óbito para fazer o registro em cartório, que tem até cinco dias para efetuar o registro de óbito. Depois são até oito dias para enviar a informação à Central Nacional de Informações do Registro Civil. Então são cerca de 15 dias para a contabilização. Essa discrepância é de fato esperada", explica.

Consultado sobre a discrepância nos dados, o Ministério da Saúde afirmou que "desconhece as metodologias adotadas pelas outras bases de dados e não se pronunciará". Técnicos da pasta ouvidos pelo Valor afirmam que alguns fatores podem levar às variações entre as diferentes bases de dados. Um deles é o horário de divulgação. O ministério coleta os dados dos Estados que chegam até as 17 horas, para divulgação às 18 horas - embora ontem o número tenha saído com quase uma hora de atraso. Já os números do consórcio de jornais, divulgados por volta das 20 horas, são tabulados mais tarde.

Outro fato que pode causar desencontros de números é o fato de uma pessoa morar numa cidade, onde o registro da morte deve ser feito, e ter morrido em outra, onde a Declaração de Óbito foi fornecida. "Mas são poucos casos, que não causam grandes discrepâncias. É mais comum ocorrerem diferenças na notificação de casos confirmados, pois as pessoas podem ir a mais de um estabelecimento de saúde", diz Karina.

Para especialistas, ao mudar a comunicação e dificultar o acesso aos dados que recebe de municípios e Estados, o governo tenta camuflar a realidade e mudar artificialmente a espiral da pandemia no Brasil, transferindo para o âmbito da crise de saúde a polarização política. "Cria-se, assim, os números do Bolsonaro, e os números de sua oposição", diz Claudio Maierovitch, médico da Fiocruz que enfrentou a emergência internacional do zika vírus quando foi diretor do Departamento de Vigilância de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, entre 2011 e 2016.

"Ao se propor a divulgar dados das 24 horas anteriores, por exemplo, o governo despreza casos que estavam em processamento. Teremos um retrato muito menor da realidade, e num momento em que é necessário ter informações mais imediatas. O ministério está suprimindo informações", explica o cientista, que passou também pelas epidemias de dengue de 2015 e 2016.