O globo, n. 31701, 23/05/2020. Economia, p. 23

 

Brasil terá que adaptar critérios do exterior para sua retomada

Cássia Almeida

Leo Branco

23/05/2020

 

 

Folga no sistema de saúde e taxa de contaminação em baixa são os parâmetros que devem ser seguidos para planejar o relaxamento da quarentena, segundo especialistas. No momento em que a Europa, estados e cidades brasileiras começam a testar a reabertura programada, os indicadores de saúde é que vão determinar o ritmo e a abrangência da flexibilização do isolamento. Mas epidemiologistas e economistas dizem que o Brasil ainda não está pronto para reabrir a economia. O uso da capacidade de atendimento hospitalar deve estar em 70% ou abaixo disso. O ideal seria 50% para começar a permitir a reabertura da economia. E, ao ultrapassar essa capacidade, as restrições de locomoção devem voltar, o quevaiexigirdosgovernantes a definição de critérios para fechar novamente, se esses indicadores forem atingidos. — Os países que saíram do lockdown garantiram uma taxa de capacidade ociosa de 30% a 50%, mostrando que conseguiram achatar a curva da disseminação —afirma o oncologista Daniel Tabak, integrante do Comitê de combate ao coronavírus do Rio de Janeiro.

 TAXA DE CONTAMINAÇÃO

A dificuldade brasileira, segundo ele, é a falta de testagem. A economista Monica de Bolle, diretora de Estudos Latino-Americanos da Universidade Johns Hopkins, diz que o ReinoUnido,quetemnúmero de casos semelhante ao do Brasil, testa dez vezes mais: — Enquanto o Reino Unido testa 39,5 mil por milhão de habitantes, o Brasil testa 3,4 mil por milhão. A subnotificação é o drama do Brasil. Não temos a epidemia bem mapeada. É a mesma coisa que fazer política fiscal e monetária sem saber o tamanho do PIB. Em várias partes do Brasil, ou a reabertura tende a ser absolutamente desastrosa ou demorar muito tempo indo e vindo. Rudi Rocha, coordenador de pesquisas do Instituto de Estudo de Saúde Pública (Iesp) e pesquisador da Fundação Getulio Vargas (FGV), cita outro indicador, a taxa de contaminação por pessoa, que indica quantos são infectados por quem carrega o vírus: — Temos de acompanhar a capacidade de resposta do sistema hospitalar. A partir do momento que a curva está acelerando, o parâmetro a ser acompanhado é quantas pessoas estão sendo infectadas em determinado período. Acima de um, o número de casos cresce exponencialmente. Reduzir a taxa de contaminação para menos de um foi o que permitiu que alguns países da Europa pudessem começar a reabrir, diz Rocha. Esse é um dos critérios recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para relaxar o isolamento. Além disso, é necessário observar a capacidade do sistema de saúde, inclusive de testar e isolar, fazer prevenção no trabalho e engajar a sociedade. Segundo Monica, a reabertura nos EUA respeita a margem de segurança no sistema de saúde. Escritórios adotam turnos para evitar saturação do transporte, restaurantes só fazem entregas, ônibus e metrôs têm divisórias.

Mas o desafio maior é reabrir as escolas, na opinião do sociólogo Marcelo Medeiros, professor visitante da Universidade de Princeton, nos EUA. Para o pesquisador, o mais importante é ter em mente que a abertura se dará em ondas. Igrejas e lazer devem ser os últimos a funcionar.

Na falta de um plano do governo federal para a retomada com segurança das atividades, alguns estados implantaram protocolos por conta própria. Em dois casos, no Rio Grande do Sul e em Niterói, o número de testes supera o da média nacional. Na cidade fluminense, que começou anteontem a permitir algumas atividades, um em cada dez habitantes é testado. A média brasileira é de um a cada 40. A cidade adotou cores para identificar a situação. Agora podem funcionar, além de serviços essenciais, óticas, lojas de materiais de construção, oficinas mecânicas e de bicicletas, e consultórios médicos e odontológicos. — Fizemos sanitização de ruas e comunidades e testagem massiva. O Programa Médico de Família faz o rastreamento de infectados, e há centros de quarentena para população de menor renda — explica o prefeito de Niterói, Rodrigo Neves. O isolamento dos que podem ficar em casa permanece até 30 de junho. O prefeito do Rio, Marcelo Crivella, disse anteontem estar na iminência de relaxar a quarentena, mas ainda não apresentou um plano.

Atualmente, a taxa de ocupação, considerando toda as unidades da rede estadual do Rio, é de 79% em leitos de enfermaria e 86% nos de UTI. O governo do Estado do Rio anunciou planejamento para a reabertura da economia, que levará em conta a capacidade hospitalar e a taxa de contaminação. Para sair da quarentena, só se o uso do sistema estiver entre 70% e 90%. Também são usadas cores para definir o estágio, que será atualizado semanalmente.

 SISTEMA DE CORES

O caso mais avançado é do Rio Grande do Sul, onde desde 11 de maio vigora um sistema de bandeiras, atualizadas uma vez por semana, para determinar o risco de surtos em 20 regiões do estado. Com bandeira preta, o comércio fecha as portas; com a laranja, pode ter até 50% dos funcionários no mesmo turno. São acompanhados a evolução de casos e o número de UTIs vagas, e dados econômicos, como os empregos e impostos gerados pelas cadeias produtivas de cada região. — A estratégia é promover um distanciamento controlado, para permitir a retomada das atividades —diz Leany Lemos, secretária de Planejamento do governo gaúcho. Um dos primeiros estados a decretar regras de isolamento social, em março, o Rio Grande do Sul tem 1,3 morte por cem mil habitantes —a média brasileira está em 8,6 casos por cem mil. Em Minas Gerais, o governo de Romeu Zema encomendou a 16 associações empresariais a elaboração de protocolos de segurança para reabertura de estabelecimentos, em um sistema classificado por cores. A ideia é que este sirva de base para os 853 prefeitos mineiros tomarem decisões sobre o que abre ou fecha. Os estados têm replicado práticas de países europeus. A Espanha começou a abrir o comércio em 13 de abril. O ritmo varia de acordo com a situação em cada região. A retomada foi guiada por UTIs e médicos para atender aos doentes, estar numa curva decrescente de casos e a iniciativa privada já ter definido protocolos de segurança. Na França e na Itália, a retomada foi condicionada a três indicadores: número de pessoas contaminadas na última semana, capacidade dos sistemas de saúde em atender novos casos e testagem. —Um passo fundamental é fazer a gestão eficiente dos dados, controlar a evolução da pandemia e dialogar de maneira transparente com a população —resume Regina Esteves, presidente da ONG Comunitas, dedicada à inovação na gestão pública.