Título: Fazenda dividida ao meio
Autor: Ribas, Sílvio
Fonte: Correio Braziliense, 07/01/2013, Economia, p. 7

O sonho de Francivaldo Vieira Negreiros foi cortado ao meio pela Ferrovia Norte-Sul — a maior e mais demorada obra do setor no país. A propriedade rural em Uruaçu (GO) onde o cearense de 50 anos vive com a família foi parcialmente desapropriada em 2008 para dar passagem à estrada de ferro, dividindo o terreno em duas partes separadas. Além de ser um dos que ainda brigam na Justiça para aumentar o valor da indenização paga pela Valec Engenharia, estatal responsável pela construção da ferrovia, ele ainda lastima os transtornos surgidos desde que a sua cerca foi tombada em nome do progresso brasileiro.

Suas maiores frustrações foram mesmo a de ter de vender 130 vacas leiteiras e a interdição da única fonte de água da propriedade, que restou no campo isolado pela ferrovia. Hoje, com 30 cabeças de gado de corte, o empreendedor amarga prejuízos por ter deixado de tirar 300 litros de leite por dia das 130 vacas que vendeu diante da dificuldade de transitá-las entre as metades de seu imóvel. As três centenas de litros diários garantiam renda mensal de R$ 7,2 mil. Atualmente, ele tira só cinco. “Era um dinheirinho que ajudava”, suspira.

No lado de lá da linha férrea, os animais que sobraram pastam e voltam pela passagem estreita feita pela Valec depois de muita cobrança. Quanto ao suprimento de água, os engenheiros da estatal deram uma solução diferente da mais óbvia, que seria a perfuração de poço artesiano dentro da extensão onde mora o dono da chácara. Depois de muita demora, foi instalada uma grossa mangueira para bombear o líquido de um lado para outro, suspensa por cabos e pequenos postes sobre o Lote 4 da Norte-Sul. “O pessoal da obra só sabe fazer gambiarra”, reclama Rossana Monteiro Negreiros, 44, mulher de Francivaldo.

O casal reside desde 2001 com dois filhos maiores e um neto de 6 anos na Chácara no Céu, onde antes funcionava um haras. A ideia do nome foi instantânea, conta Francivaldo, porque estava realizando uma conquista sonhada: se mudou de uma rua no centro para um “lugar tranqüilo, próximo de tudo e bom para a pecuária”. Mas quando os tratores marcharam para prosseguir a Norte-Sul, a coisa mudou radicalmente. “Ela não é uma ferrovia, mas uma infernovia, que não avança e ainda deixa tristeza pelo caminho”, resume Rossana. “Dizem que a obra volta em fevereiro. Será?”, indaga o marido.

Transtorno Para piorar, as interrupções em série da obra, parada há um ano e meio, fizeram do futuro complexo rodoferroviário, que cruza a rodovia GO-237, um transtorno para quem lá trafega. Os moradores contam que, no período de seca, a poeira é constante e tira a visão em pleno meio- dia graças à espessa neblina levantada pelo vaivém de carros e caminhões.

A luta de Francivaldo contra a União começou poucos meses após ter recebido a intimação para entregar 5,6 dos 40 hectares que a sua terra tinha. Ele conta que se viu coagido pelo aviso judicial para ceder espaço ao empreendimento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), num prazo de poucos dias. Se resistisse, seria preso, ressaltava o comunicado que ele guarda até hoje na mão. Recebeu apenas R$ 55 mil, depositados pela Valec. Contratou então advogado para buscar seus direitos na vara federal da cidade.

No processo aberto há pouco mais de quatro anos e do qual aguarda nova audiência, o fazendeiro argumenta que sua propriedade está dentro do perímetro urbano de Uruaçu e, por isso, deveria ser avaliada por esse padrão (metros quadrados e não hectares). Além disso, após contratar o serviço de um técnico, conseguiu mostrar que o avanço da desapropriação foi maior que o informado: 9,2 hectares e não 5,6. “Exijo reparação pelo pedaço que tomaram para fazer ligação da ferrovia com o porto seco (como os moradores locais se referem ao futuro pátio de transbordo da Norte-Sul)”, diz.

Francivaldo salienta que não recuou diante da insensibilidade da empresa e não deu ouvidos aos conselhos de conhecidos para não perder tempo em desafiar o governo e confiar na expectativa de grande valorização das terras num prazo de 20 anos. “Sou cidadão e tenho direitos. Aposto que a presidente Dilma não está sabendo desses absurdos”, comenta o homem, que trabalhou 16 anos em Brasília como comerciário. Diz que até tentou fazer acordo com a Valec, propondo R$ 100 mil de indenização para encerrar o impasse.

“Mais vale paz que dinheiro. Acusam a mim de ser intransigente e de querer tumultuar os trabalhos na ferrovia, mas o que me deram daria para comprar só um lote na cidade”, desabafa. Sua esperança está no juiz federal José Cândido Ribeiro.

O presidente da Valec, o também cearense Josias Cavalcante, declarou ao Correio que reconhece o questionamento sobre os valores pagos pelas desapropriações como “direito legítimo dos insatisfeitos”. “Numa democracia, há complexas divergências de interesse que são respeitadas”, observa. Embora não saiba informar quantos donos de terras desapropriadas pela estatal ao longo da Norte-Sul querem revisão dos montantes recebidos e qual o valor global das queixas, ele garante que a estatal criou em 2012 uma superintendência só para tratar do tema.