Correio braziliense, n. 20868a , 12/07/2020. Cidades, p.20

 

Câmara Legislativa deve criar CPI

Darcianne Diogo

12/07/2020

 

 

Após a repercussão do caso do jovem picado por uma naja kaouthia na última terça-feira, que desencadeou a investigação de um suposto esquema de tráfico internacional de animais silvestres e exóticos, o vice-presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) enviou, ontem, à Presidência da Casa, pedido para instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), com a finalidade de investigar situações de maus-tratos a animais. O requerimento foi lido em Plenário em março de 2019, mas, segundo o parlamentar, esse é o momento oportuno para dar início às investigações.

“Diante dos fatos que foram noticiados, de animais silvestres viverem em cativeiro sem autorização dos órgãos competentes, revelando esse esquema, a CLDF precisa atuar para descobrir esta rede, bem como seus financiadores e mentores”, pontuou o deputado, em entrevista ao Correio. Reforçou, ainda, a necessidade de investigar, no sentido mais amplo, a ocorrência dos fatos, apontando os infratores ao Ministério Público, para responsabilizados dos envolvidos nos âmbitos civil e criminal.

Investigações

O mistério sobre o caso do estudante de medicina veterinária Pedro Henrique Lehmkuhl, de 22 anos, está apenas no começo. Ontem, a polícia apreendeu mais uma serpente, de espécie jiboia arco-íris. O animal é nativo do Brasil e mede cerca de 1,5m. A cobra estava em um apartamento vazio na QE 40 do Guará 2, que pertence a um servidor do Judiciário. Investigações apontam que o homem é pai de um dos amigos de Pedro, o mesmo que teria ocultado 17 serpentes, após o incidente. Ele, que também cursa medicina veterinária, teria soltado a naja próximo ao shopping Pier 21.

No imóvel, agentes também encontraram ratos, que serviam de alimento para a cobra, um casco de tatu, além de uma lâmpada fabricada em vidro vermelho real, para manter o animal aquecido durante a noite. O equipamento é próprio para produzir pouca luz e não perturbar o sono dos répteis. A polícia constatou que o animal estava em condições de maus-tratos.

O servidor mantinha o animal em cativeiro e, no momento da abordagem, apresentou documentação incompleta, em nome de terceiros e com o endereço divergente. Ele foi autuado por manter o animal exótico sem a devida permissão e por maus-tratos.

De acordo com o delegado da 14ª Delegacia de Polícia (Gama), Willian Ricardo, há muito o que ser apurado. Duas linhas de investigação são levadas em consideração: o envolvimento de Pedro Henrique e de outros colegas em um esquema internacional de tráfico de animais e o uso dessas espécies para a produção de pesquisas clandestinas. “Se a naja for proveniente de um cruzamento que aconteceu em território brasileiro, é muito provável que existam outras pelo país. E isso é perigoso, já que as cobras não são de fauna local e podem causar um desequilíbrio ambiental se forem soltas na natureza”, disse.

A captura de tubarões também pode estar ligada ao caso do estudante picado. Na sexta-feira, a Delegacia Especial de Proteção ao Meio Ambiente e à Ordem Urbanística (Dema) encontrou três tubarões de espécies diferentes em uma chácara localizada na Colônia Agrícola Samambaia. Na mesma residência, foram capturados sete serpentes, uma moreia e um lagarto teiú. O responsável pelos animais apresentou documentações de apenas uma das jiboias e do teiú. Ele foi autuado em flagrante por crimes ambientais e será multado pelo Ibama.

De acordo com a delegada da Dema Fernanda Lopes, responsável pelas investigações desse caso, os tubarões permaneceram na chácara, por meio de termo de depósito, em razão da impossibilidade de transporte seguro e destinação adequada, mas o Ibama já estava à procura de um local seguro para os peixes. “Vamos dar continuidade às investigações justamente nesse sentido do tráfico, por isso não estamos divulgando maiores informações sobre os vínculos (entre o jovem picado e os animais resgatados)”, disse a investigadora.

Uma das espécies dos tubarões encontrados não é do Brasil, como explica o biólogo e gerente de Projetos Educacionais do Zoológico de Brasília, Igor Morais. “Esse é um tubarão-bambu adulto. Aparenta ser um tubarão-lixa, mas não é, pois a cabeça do tubarão-bambu é mais alongada na direção vertical e a boca dele é mais pronunciada. Há, pelo menos, 13 espécies desse tipo conhecidas e elas vivem nos oceanos Índico e Pacífico. Quatro delas são classificadas como ‘quase ameaçada’ pela Lista Vermelha Internacional. É importante lembrar as pessoas que a maioria dos peixes marinhos não se reproduz em aquários domésticos e, portanto, vem de capturas no ambiente natural”, detalhou.

»  Linha do tempo

7 de julho

» Pedro Henrique é picado por uma naja dentro de casa, em um apartamento no Guará 2. Ele criava e mantinha a serpente na residência.

8 de julho

» Naja é encontrada pelo Batalhão de Polícia Militar Ambiental (BPMA), próximo ao shopping Pier 21. A serpente foi deixada no local por um dos amigos de Pedro. Cobra foi enviada ao Zoológico de Brasília.

9 de julho

» Polícia Militar encontra uma espécie de criadouro no Núcleo Rural Taquara, em Planaltina, com 16 serpentes. Investigações apontam que Pedro e amigos estejam envolvidos em pesquisas clandestinas de

animais exóticos.

10 de julho

» Amigos de Pedro prestam depoimento à polícia pela manhã. À noite, agentes da Dema encontram três tubarões, sete serpentes, um lagarto teiú e uma moreia. No mesmo dia, dois filhotes de cobras foram entregues, voluntariamente,

ao Ibama.

11 de julho

» Polícia encontra uma jiboia arco-íris, ratos e casco de tatu em um apartamento vazio no Guará 2. Proprietário é pai de um dos amigos de Pedro.

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Naja chega a valer R$ 7 mil

Hellen Leite

12/07/2020

 

 

MERCADO ILEGAL » Mensagens monitoradas por ONG revelam lucrativo mercado clandestino de serpentes - como a que picou estudante no Distrito Federal - e de outros animais que atraem cada vez mais os jovens

Brasília tem acompanhado uma história que, a princípio, parecia um assustador acidente doméstico, mas mostrou-se algo mais assombroso. Na última terça-feira, Pedro Henrique Santos Krambeck Lehmkuhl, 22 anos, foi picado por uma cobra naja e entrou em coma. Mas, além da equipe médica que agiu para salvar a vida do rapaz, o episódio mobilizou também a Polícia Civil do Distrito Federal, que precisou entender como a serpente, de origem asiática, havia chegado à casa do estudante de medicina veterinária. A busca pela resposta revelou dezenas de animais mantidos em criadouros clandestinos, incluindo cobras de várias espécies, lagartos, enguias e até tubarões. Um novelo cujo desenrolar parece levar a um esquema de tráfico de animais silvestres na capital do país.

A prática de tráfico internacional de animais ainda não foi comprovada, mas especialistas que atuam no combate a essa atividade veem todos os sinais do crime na história brasiliense. Nos últimos anos, cresceu imensamente o interesse de brasileiros por serpentes exóticas, dando uma nova cara a esse mercado clandestino no país. “O Brasil, por ser grande detentor de biodiversidade, sempre figurou como exportador de animais exóticos vendidos ilegalmente. O que tem mudado nos últimos anos é o papel do Brasil, que passou a ser, também, importador ilegal de animais”, diz o coordenador-geral da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), Dener Giovanini.

Durante cinco meses, a ONG de Giovanini infiltrou-se em 250 grupos de WhatsApp brasileiros dedicados à comercialização de animais silvestres e exóticos e acompanhou mais de 3,5 milhões de mensagens. A maioria dos grupos é intermediada por comunidades do Facebook, que chegam a reunir mais de 100 mil pessoas. Chama a atenção a crescente presença de jovens nas negociações clandestinas. “Eles têm se tornado, cada vez mais, colecionadores de serpentes. E, como em todo hobby, existem os troféus, que são as mais perigosas, mais peçonhentas e mais difíceis de achar”, diz o coordenador.

“Não é barato”

No monitoramento — ocorrido entre abril e agosto de 2019 e que rendeu uma denúncia encaminhada à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal —, a ONG descobriu que uma naja africana ou asiática custa até R$ 7 mil no mercado ilegal. Se a cobra for nascida em território brasileiro, em criadouro clandestino, é negociada a preços mais baixos, com um filhote valendo em torno de R$ 1 mil. Em um dos anúncios captados pela Renctas, uma naja de monóculo, a mesma espécie que picou Pedro Henrique, é oferecida com um alerta: “Não é barato. Não é para quem começou o hobby agora. Tenho casal disponível”.

Cartões de crédito e débito e depósitos em conta bancária são os métodos mais comuns de pagamento, mas relógios e joias também são aceitos em troca ou como parte do valor pago pelos animais. É comum, ainda, os traficantes de serpentes agendarem encontros para a entrega de animais peçonhentos em shopping centers, transportando-os em mochilas.

Ainda segundo levantamento do Renctas, as serpentes que chegam ao Brasil são provenientes, principalmente, da África, Ásia e Austrália, e entram no país pelas fronteiras com Suriname, Guiana e Uruguai. Entre as exóticas regularmente traficadas estão as najas, a king snake (cobra-rei), as mambas-negras e verdes, a víbora-do-gabão e a taipan-do-interior, considerada a espécie mais venenosa do mundo. Essas são serpentes que se adaptam bem ao Brasil, e o monitoramento identificou a queda no preço desses animais, um sinal de que estão sendo reproduzidas em cativeiro no país.

Riscos ambientais

Estima-se que o tráfico de animais silvestres movimente, aproximadamente, US$ 20 bilhões por ano em todo o mundo. O Brasil, acredita Giovanini, é responsável por 15% desse mercado, que, além de expor os animais a situações de maus-tratos, gera uma série de riscos, tanto para quem compra quanto para a população em geral. Animais, quando não manejados adequadamente, podem escapar e entrar em residências. O crime também ameaça o equilíbrio ecológico e eleva os riscos sanitários para a população.

“A interação entre animais e o ser humano não é considerada boa porque animais silvestres podem ser vetores de doenças letais para os seres humanos. A mesma coisa é o inverso, quando o homem invade o habitat do animal, ele também está sujeito a adquirir doenças. É o caso do coronavírus, por exemplo, que surgiu, possivelmente, da interação entre o animal silvestre e o homem”, ressalta o biólogo Jair Neto Vieira.

Existe, também, o risco evidente para quem adquire um animal silvestre, como mostrou o episódio com Pedro Henrique. “É uma situação complexa e grave. A história ocorrida em Brasília serve para alertar pais de jovens e adolescentes, principalmente porque não há soro antiofídico no Brasil para alguns desses animais traficados”, ressalta Marco Freitas, herpetólogo e analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Freitas diz não ter dúvidas sobre a existência de uma rede de tráfico de animais no DF. “Brasília está vivendo o caos do tráfico de animais. O que se descobriu não é nem a ponta do iceberg ainda”, afirma. A mesma certeza tem o delegado Willian Ricardo, da 14ª Delegacia de Polícia (Gama), responsável pelas investigações iniciadas após o episódio da naja. “Os envolvidos não disseram como conseguiam as serpentes. Há suspeitas de que, possivelmente, eles iam comercializar as cobras apreendidas”, diz.