O globo, n. 31631, 14/03/2020. Opinião, p. 3

 

'Toma que o vírus é seu'

Eurípedes Alcântra

14/03/2020

 

 

Com a situação doméstica sob controle, a China diz ao mundo: “toma que o vírus é seu.” São agora pouco mais de dez novos casos por dia para uma população de 1,4 bilhão de chineses. Desde os primeiros pacientes diagnosticados na segunda quinzena de janeiro deste ano na cidade de Wuhan, passaram-se menos de três meses de luta 24 horas por dia, sete dias por semana, contra uma doença transmissível por um agente microscópico desconhecido que ataca o sistema respiratório. Oficialmente, a China terminou, senão a luta, pelo menos o primeiro round, com vitória por nocaute contra o novo coronavírus.

Que lições o mundo pode tirar da Batalha de Wuhan? A mais relevante de todas é a de que somos um planeta em que 7,7 bilhões de pessoas convivem em proximidade real e digital sem precedentes na história, dando materialidade ao sentimento antes de significação apenas religiosa e filosófica de que “não importa onde, se um ser humano sofre, eu sofro junto.” Sofre mesmo, mas não mais na alma. Sofre na pele e no bolso. Lembra-se da Teoria do Caos, segundo a qual “uma borboleta bate asas em Tóquio e provoca um tornado no Texas”? Agora não é mais apenas uma frase de efeito. Um chinês espirra em Wuhan, e 6 trilhões de dólares evaporam dos mercados financeiros. Um idoso italiano morre de gripe associada ao coronavírus na Lombardia, e a Casa Branca proíbe todos os 400 voos comerciais diários entre Estados Unidos e Europa. Com menos de cem casos, dois em estado grave e nenhuma morte, o Brasil ensaia fechar escolas, empresas anunciam a adoção do trabalho remoto de casa para seus funcionários, e as pessoas são aconselhadas a se cumprimentar sem sequer dar as mãos. Assim é o bravo novo mundo da hiperconexão. Não tem como escapar.

As seis causas principais de morte prematura na China em 2017, três anos antes da eclosão do surto de novo coronavírus, foram, pela ordem, derrame, ataque cardíaco, obstrução pulmonária crônica, câncer de fígado e os acidentes de trânsito. Ao final deste ano, depois do furacão biológico que parou, primeiro, o país de Xi Jinping e depois o mundo, as seis principais causas de morte prematura na China serão, pela ordem, derrame, ataque cardíaco, obstrução pulmonária crônica, câncer de fígado e acidentes de trânsito. Exatamente as mesmas de 2017.

Em termos de impacto real nas estatísticas de saúde pública, as 3.172 mortes associadas ao novo coronavírus (dados de quintafeira, dia 12 de março) na China contribuem com um “traço”. Mesmo que venha ocorrer o improvável, a morte de todos os 4.000 pacientes ainda em estado grave na China, ainda assim a Covid-19, nome oficial da doença respiratória causada pelo novo coronavírus, será estatisticamente insignificante. Antes da Covid-19, morriam 1 milhão de chineses a cada ano por obstrução pulmonária crônica, resultado dos altos índices de poluição do ar e tabagismo. No pior cenário, portanto, terão morrido até dezembro de 2020, o 1 milhão esperado e mais as já ocorridas e as potenciais 7.172 vítimas fatais da Covid-19.

Esses números demonstram que o novo coronavírus é uma “fantasia” e que se pode cruzar os braços sem fazer nada enquanto ele se propaga? Obviamente, não. Eles mostram que, antes, a notícia de uma gripe misteriosa em um cantão da China, a mais de 10.000 quilômetros de distância de nossos problemas reais do dia a dia, chegaria a nós brasileiros apenas como mais uma raridade preocupante, mas não paralisante, do Extremo Oriente. Pois agora, na Era da Hiperconexão, essa doença na maioria das vezes sem gravidade, mas transmitida pelo ar a uma velocidade duas vezes maior do que a da gripe comum, nos bate com contornos de pânico —e o pânico, como se sabe, mesmo sem base estatística convincente, é destruidor. Pelo menos, a China, que nos disse na semana passada “toma que o vírus é seu” nos deu também as diretrizes sanitárias para a contenção da doença e a prova de que ela deve ser encarada e pode ser vencida.