O globo, n. 31693, 15/05/2020. País, p. 4

 

"Vou interferir"

Carolina Brígido

Aguirre Talento

Bela Megale

15/05/2020

 

 

Em transcrição entregue por sua defesa, Bolsonaro Cita PF em reunião com ministros

 A Advocacia- Geral da União (AGU) entregou ao Supremo Tribunal Federal (STF) transcrição de dois trechos da reunião ministerial de 22 de abril, citada pelo ex-ministro Sergio Moro como prova de que o presidente Jair Bolsonaro tentou interferir nas atividades da Polícia Federal (PF). É a primeira vez que falas de Bolsonaro na reunião aparecem transcritas em documento oficial — a decisão sobre a divulgação do encontro caberá ao ministro Celso de Mello, relator do inquérito no STF.

Em um trecho, Bolsonaro reclama de receber poucas informações da PF e de outros órgãos, e afirma que vai “interferir”. O presidente tinha negado ter feito qualquer menção à corporação no encontro.

Os trechos foram selecionados pela AGU para defender a divulgação parcial da reunião. As duas falas mencionadas são separadas por 50 minutos. A defesa de Moro, que já se posicionou a favor da publicidade integral do encontro, reclamou que a petição da defesa do presidente remetida ao Supremo “omite contexto e trechos relevantes” da reunião, o que pode prejudicar a melhor compreensão das falas e a própria investigação.

No material entregue pela defesa do presidente, há uma reclamação direta de Bolsonaro sobre a Polícia Federal.

“Eu não posso ser surpreendido com notícias. Pô, eu tenho a PF que não me dá informações; eu tenho as inteligências das Forças Armadas que não têm informações, a ABIN tem os seus problemas, tem algumas informações, só não tem mais porque tá faltando realmente… temos problemas… aparcelamento, etc. A gente não pode viver sem informação”, diz o presidente.

Na sequência, há um trecho omitido pela própria AGU sob a alegação de ele incluir menções a “nações amigas”. Ao fim desta fala, o presidente fala explicitamente sobre intervenção nos órgãos que, segundo ele, não o informam bem.

“Então essa é a preocupação que temos que ter: a questão estratégia. E não estamos tendo. E me desculpe o serviço de informação nosso — todos — é uma vergonha, uma vergonha, que eu não sou informado, e não dá para trabalhar assim, fica difícil. Por isso, vou interferir. Ponto final. Não é ameaça. Não é extrapolação da minha parte. É uma verdade”, concluiu.

“SEGURANÇA NOSSA”

Dois dias depois da reunião foi publicada no Diário Oficial a exoneração do diretor geral da Polícia Federal Maurício Valeixo, o que levou Moro a pedir demissão. Após ter a indicação de Alexandre Ramagem barrada pelo Supremo, Bolsonaro colocou no lugar Rolando Alexandre de Souza, que em um primeiro ato convidou o superintendente do Rio, Carlos Henrique Oliveira, para ser diretor-executivo da instituição, atendendo assim a um desejo do presidente de mudar o comando no estado.

Em outro trecho transcrito na petição da AGU, Bolsonaro disse querer trocar a “nossa segurança” no Rio. Neste momento, ele cita a preocupação coma própria família e, ao dizê-lo, diz que não hesitará em trocar até mesmo “o ministro” caso seja necessário. “Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira”.

A AGU diz na petição que o termo“segurança nossa” se referia às e gu rança presidencial, a cargo do Gabinete de Segurança Institucional, e não à PF. Nenhum dos órgãos, porém, tem atribuição de proteger “amigos” do presidente. Fontes que assistiram a ovídeo afirmam que o contexto da fraseé no âmbito de investigações e que a referência a“troca de ministro” era claramente a Moro. Este é mais um ponto usado como argumento pelos que defendem a divulgação integral do vídeo, afim de garantir a melhor compreensão de todo o contexto.

Após Moro pedir demissão, Bolsonaro chegou a anunciar que divulgaria a íntegra da reunião ministerial. Depois, recuou e passou a defendera divulgação parcial. Quando o procurador-geral da República, Augusto Aras, solicitou e o ministro Celso de Mel lo concordou coma remessado material para os autos do inquérito, a AGU primeiro pediu a reconsideração total alegando temas de “segurança

nacional”. Solicitou na sequência que fosse dado publicidade apenas a trechos relativos ao inquérito.

Os trechos transcritos “não estão no mesmo contexto” e não se poderia concluir que a interferência seria relativa à PF, na interpretação do advogado-geral da União, José Levi Mello do Amaral Junior. Ainda segundo a AGU, Bolsonaro não manifestou insatisfação com relatórios de inteligência da PF. O presidente teria demonstrado insatisfação “em contexto completamente diverso, de modo meramente exemplificativo, rigorosamente genérico”.

ARAS QUER OMITIR TRECHOS

Em nota, a defesa de Sergio Moro afirmou que o uso de trechos literais da reunião pela AGU reforça a necessidade de o vídeo ser divulgado na sua íntegra. “A transcrição parcial revela disparidade de armas, pois demonstra que a AGU tem acesso ao vídeo, enquanto a defesa de Sergio Moro não tem”, argumenta o advogado Rodrigo Rios, em nota.

Ele afirma que “a petição contém transcrições literais de trechos das declarações do Presidente, mas com omissão do contexto e de trechos relevantes para a adequada compreensão do que ocorreu na reunião — inclusive, na parte da ‘segurança do RJ’, do trecho imediatamente precedente”.

Na noite de ontem, o procurador-geral Augusto Aras se manifestou ao STF alinhando-se à posição da AGU, ou seja, pedindo que o ministro Celso de Mello determine a divulgação apenas parcial do vídeo. Em seu despacho, ele afirma que a divulgação completa da gravação serviria de “arsenal de uso político, pré-eleitoral (2022), de instabilidade pública”.

A Polícia Federal agendou para a próxima semana uma nova rodada de depoimentos no inquérito. Serão ouvidos outros delegados que podem ter informações sobre esses fatos sob suspeita.

Um dos depoimentos é do delegado Cláudio Ferreira Gomes, diretor de inteligência da PF, que será ouvido sobre o envio de relatórios de inteligência para Bolsonaro, uma das principais justificativas usadas pelo presidente para justificar seus pleitos de demissão de nomes da corporação. Cláudio será ouvido na terça-feira.

Na quarta, serão ouvidos os delegados Cairo Costa Duarte (superintendente da PF de Minas Gerais) e Rodrigo Morais. Morais foi responsável pela investigação de Adélio Bispo, autor da facada contra o presidente, e concluiu em seu relatório que não houve mandantes no crime. Cairo acompanhou essa investigação e também será ouvido a respeito desse assunto.

Os delegados Cairo e Morais estiveram em Brasília para conversar com o novo diretor-geral da PF Rolando de Souza sobre o novo relatório do caso Adélio. O documento concluiu que ele agiu sozinho em 2018 (leia mais na página 6). Além deles, o delegado Carlos Henrique Oliveira, ex-superintendente da PF do Rio, que confirmou aos investigadores a existência de um inquérito contra o senador Flávio Bolsonaro na PF do Rio, pediu para ser ouvido novamente, o que ocorrerá na quarta-feira.