Valor econômico, v.21, n.5034, 02/07/2020. Política, p. A9

 

Projeto sobre "Fake News" tende a ser revisto na Câmara

Malu Delgado

02/07/2020

 

 

O projeto batizado de Lei das “Fake News”, aprovado na terça-feira no Senado, tem potencial para provocar no futuro um vazamento massivo de dados, abre brechas para indevida regulação econômica e viola preceitos da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que o Congresso já aprovou, mas cuja implementação foi adiada para agosto de 2021, por decisão dos próprios parlamentares.

A crítica é de especialistas em direito digital e comunicação, que alertam que o tema é complexo e reprovam a celeridade com a qual o Senado votou o projeto. Consultores digitais que assessoram parlamentares no Congresso acreditam que haverá mais cautela e tempo para o debate na Câmara.

A expectativa é que o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), que foi o relator da LGPD em 2018, possa estar à frente também da Lei das “Fake News”. O parlamentar disse que cabe ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), escolher o relator. Silva reconhece que, a pedido de Maia, acompanhou a tramitação do texto no Senado e conversou com o relator, Ângelo Coronel (PSD-BA).

“Relatei todas as matérias ligadas à proteção de dados, que guarda relação com privacidade e tem conexões com campanhas de desinformação”, disse Silva. Caso receba essa tarefa de Rodrigo Maia, afirma, acatará prontamente. “Precisa conversar com todo mundo, botar luz nos temas polêmicos, olhar para a experiência internacional”, disse.

A votação no Senado foi tumultuada. No dia da votação, pela manhã, circulou entre os senadores o texto de um relatório. À noite, outro, bastante modificado. Nas duas últimas semanas também foram apresentadas diferentes versões do relatório de Ângelo Coronel.

O placar da votação, 44 votos a favor e 32 contrários, 2 abstenções, mostrou que o tema não estava pacificado. E só foi possível a aprovação após um debate acirrado para retirar do texto tudo o que tipificava a disseminação de “fake news” com organização criminosa e também referências ao processo eleitoral. A base bolsonarista ficou insatisfeito e ontem, na porta da Alvorada, o presidente afirmou que pode vetar a proposta.

Advogado especializado em regulação, tecnologia e proteção de dados pessoais e diretor da ONG Data Privacy Brasil, Rafael Zanatta pontua que a LGPD foi debatida ao longo de oito anos no Congresso, e o Marco Civil da Internet, por seis.

Segundo o especialista, a Lei das “Fake News” considera que “privacidade é o mesmo que conteúdo de informação”. O principal problema, diz Zanatta, reside na permissão para a rastreabilidade de metadados, o polêmico artigo 10.

Os parlamentares argumentam que haverá proteção da privacidade, porque o conteúdo das mensagens não será revelado, mas o advogado explica que esse é um conceito do século XIX, porque hoje é preciso pensar em “proteção de dados.

“Hoje se identifica uma pessoa pelo modo de utilização da rede. Esse modelo que eles aprovaram vai criar um sistema poderoso de rastreabilidade”, alerta. Os senadores, argumenta o especialista, confundiu privacidade com proteção de dados pessoais, como se o que você falasse nas redes ficasse “dentro de quatro paredes”.

A ideia de proteção de dados, afirma Zanatta, é que isso precisa ser tratado com monitoramento sobre as formas como os dados serão utilizados. “Isso passa longe deste projeto. Rastreabilidade exige várias garantias, que não estão postas. Criaram um mecanismo de vigilância bastante inédito no mundo.”

O rastreamento, previsto no texto, é o assunto mais polêmico. Diogo Rais, cofundador e diretor-geral do Instituto Liberdade Digital, autor do livro “Fake News: A Conexão Entre a Desinformação e o Direito”, diz que “o artigo 10 permite, por meio de decisão judicial, a determinação de entrega dos registros dos envios de mensagens veiculadas em encaminhamentos em massa, pelo prazo de três meses. O mesmo artigo exige também que se entregue os dados por onde passou esta mensagem. Mas como saber por onde passou determinada mensagem sem ver o que tem nela?”.

Segundo Rais, “rastrear algo pressupõe a identificação daquele conteúdo, é óbvio que não se pode seguir o que não se vê. Aquela mensagem que alcançou mil usuários e você é um deles, arrastará um túnel de vulnerabilidade que facilitará o que se tem de pior para um mundo imerso em fake news: a fake news sob medida, feita para você, capaz de te manipular utilizando seus dados e seu modo de raciocínio para dirigi-lo até onde o criminoso quer te levar.”

Há ainda uma transferência de responsabilidade integral pela disseminação de conteúdos falsos às plataformas. O projeto não cria mecanismos para focar no financiamento de “fake news” e nem deixa claro de que forma recursos arrecadados com infrações podem ser utilizados na educação midiática.