O Estado de São Paulo, n.46251, 04/06/2020. Metrópole, p.A16

 

OMS vai retomar testes com hidroxicloroquina

Guilherme Bianchini

04/06/2020

 

 

Decisão é tomada no momento em que principal estudo que apontou risco de uso da substância em todo o mundo é posto sob suspeita

Cloroquina. Após recomendação anterior da OMS, alguns países deixaram de usar produto

A Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou ontem que vai retomar os testes com a hidroxicloroquina em pacientes da covid-19, após o principal estudo contrário ao remédio ter sido posto “sob investigação”. O remédio estava suspenso do ensaio clínico global da entidade – o projeto Solidariedade – desde o dia 25, por precaução. Apesar da retomada, ainda não há evidências científicas sobre a eficácia da droga.

A decisão tem por base dados recolhidos pela própria OMS, no Solidariedade, em pacientes que tomaram a hidroxicloroquina. De acordo com o Comitê de Segurança e Monitoramento de Dados do órgão, não há riscos evidentes no uso. O projeto tem a participação de 35 países ao redor do mundo, incluindo o Brasil, que recrutaram 3,5 mil infectados pelo novo coronavírus em hospitais para testar a eficácia de possíveis tratamentos.

“O Grupo Executivo continuará monitorando de perto a segurança de todos os tratamentos testados no ensaio clínico”, disse o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus. Além da hidroxicloroquina, três drogas são analisadas pelo Solidariedade como opções: o remdesivir (usado no tratamento do ebola), o lopinavir/ritonavir (HIV) e o interferon beta-1a (esclerose). “Estamos falando de um ensaio clínico, para provar a eficácia e a segurança desses medicamentos em pacientes hospitalizados. Precisamos de resposta clara a respeito do que funciona ou não para os pacientes”, esclareceu a cientista-chefe da OMS, Soumya Swaminathan.

Na suspensão temporária da hidroxicloroquina, na semana passada, a interrupção se apoiava em um estudo externo, publicado na revista científica The Lancet, que alertou para os riscos de aumento da mortalidade e de arritmia cardíaca em infectados que tomaram o remédio, com base na análise de 96 mil pacientes em 671 hospitais. Ontem, porém, o periódico emitiu um “manifesto de preocupação” sobre esse estudo, pois especialistas levantaram “sérias dúvidas científicas” sobre a metodologia utilizada. A pesquisa está sob auditoria independente para apurar a proveniência e a validação dos dados.

Um dos principais pontos sob análise é o fato de os dados terem sido compilados pela Surgisphere, uma empresa de saúde americana. No mesmo dia, outra revista médica de referência, a New England Journal of Medicine (NEJM), também pôs sob auditoria e análise outros estudos envolvendo a Surgisphere, que vinculam a morte por covid-19 a doenças cardíacas.

O jornal inglês The Guardian lançou a público questionamentos, após ouvir uma série de fontes médicas nas últimas semanas. Conforme um levantamento feito pelo periódico, os dados compilados não têm fontes claras e exemplifica com a Austrália, onde nenhum dos principais hospitais diz ter enviado dados à Surgisphere – uma empresa que surgiu em 2008, a princípio fazendo livros didáticos. E o número de mortos compilado no estudo foi superior ao registro oficial. Além disso, apesar de alegar ter um banco de dados, a empresa mal tem presença online.

Entre os funcionários listados como diretores estão um ator pornográfico e um escritor de ficção científica. O diretor executivo, Sapan Desai, teria ainda sido listado em três processos de negligência médica. Procurado pelo Guardian, Desai negou irregularidades e diz ter montado seu banco de dados ao longo de anos.

As advertências com o termo “expressão de preocupação” sempre indicam um estudo com problemas potenciais. Gilbert Deray, do hospital parisiense Pitié-Salpêtrière, prevê a possibilidade de retratação e de “desastre” para a reputação das revistas. “Isso mostra que o ritmo científico deve se desconectar do midiático. A pandemia não justifica estudos medíocres.” A Lancet promete respostas em uma semana. Assinantes do estudo, liderados por Mandeep Mehra, diretor do Brigham and Women’s Hospital Center, em Boston, defenderam os resultados. “Estamos orgulhosos desse trabalho.” Já os médicos que vêm defendendo a hidroxicloroquina, incluindo o francês Didier Raoult, se sentem avalizados. “O castelo de cartas desabou”, afirmou nas redes sociais.

Ainda sem opção

“Isso (retomar os estudos) é muito diferente de fazer uma recomendação.”

“Até agora, não há evidência de que nenhum medicamento reduza a mortalidade em pacientes da covid-19.”

Soumya Swaminathan

CIENTISTA-CHEFE DA OMS