O globo, n. 31694, 16/05/2020. Especial Coronavírus, p. 6

 

Segunda desistência

Leandro Prazeres

Paula Ferreira

Thais Arbex

Gustavo Maia

16/05/2020

 

 

Desautorizado diversas vezes por Bolsonaro, Teich decide sair General Pazuello será o interino e vai liberar cloroquina Deputado, médica, general e almirante estão no páreo ao cargo
O oncologista Nelson Teich demitiu-se do cargo de ministro da Saúde depois da pressão pública do presidente Bolsonaro pela liberação do uso da cloroquina em pacientes infectados pela Covid-19 desde o início da doença. Em 30 dias, é o segundo ministro da pasta a deixar o cargo, e em plena fase aguda da pandemia. Na gestão de Teich, o país acumulou recordes de contágio e mortes pela doença. Em pronunciamento, ele não revelou a razão de sua saída: "A vida é feita de escolhas, e hoje eu escolhi sair", disse. Ele também divergia de Bolsonaro em relação ao isolamento social para conter a expansão do vírus e não foi consultado quando o presidente incluiu salões de beleza e academias de ginástica entre as atividades essenciais. O general Eduardo Pazuello, secretárioexecutivo do ministério, ficará como interino e deve avalizar o novo protocolo da cloroquina, exigência de Bolsonaro mesmo contra todos os estudos, no Brasil e no exterior. Além de Pazuello, outros nomes cotados para a pasta são o ex-ministro Osmar Terra, a médica Nise Yamaguchi e um almirante.

Com 29 dias no cargo de ministro da Saúde, o oncologista Nelson Teich pediu demissão ontem, após resistir a uma pressão pública do presidente Jair Bolsonaro para adotar um protocolo indicando o uso da cloroquina em pacientes com Covid-19 desde os primeiros sintomas da doença. O general Eduardo Pazuello, secretário-executivo da pasta, ficará interinamente no posto e o ministério já divulgou na noite de ontem que vai lançar uma nova recomendação para o tratamento de casos leves. Bolsonaro foi aconselhado por auxiliares a ter cautela na escolha do próximo comandante da Saúde, diferentemente do que fez ao substituir o primeiro ocupante do cargo, Luiz Henrique Mandetta — Teich foi anunciado como seu substituto no mesmo dia da saída. A expectativa é que Pazuello fique como interino à frente do ministério por ao menos uma semana. Uma das tarefas do militar deve ser assinar o novo protocolo para o uso da cloroquina no tratamento da Covid-19, exigência de Bolsonaro e motivo do impasse que culminou com a demissão de Teich. Assim o novo ministro não teria essa missão. A demissão de Teich foi consumada pela manhã, em reunião com Bolsonaro. Minutos antes, o presidente recebeu a médica Nise Yamaguchi, que defende a ampliação do uso da cloroquina. Após a saída de Teich, a Saúde divulgou nota informando que está "finalizando" novas orientações para o tratamento da Covid-19. "O objetivo é iniciar o tratamento antes do seu agravamento e necessidade de utilização de UTI (Unidades de Terapia Intensiva)", diz um trecho da nota.

"O documento abrangerá o atendimento aos casos leves, sendo descritas as propostas de disponibilidade de medicamentos, equipamentos e estruturas, e profissionais capacitados. As orientações buscam dar suporte aos profissionais de saúde do SUS e acesso aos usuários mais vulneráveis às melhores práticas que estão sendo aplicadas no Brasil e no mundo", finaliza a nota. Atualmente, o protocolo do Ministério da Saúde sobre a cloroquina —estabelecido

na gestão Mandetta — diz que ela só pode ser usada em pacientes considerados graves ou críticos.

Uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), no entanto, liberou médicos a receitarem o medicamento em outras fases da doença, desde que os pacientes sejam previamente informados sobre os seus possíveis efeitos colaterais. O CFM ressaltou, no entanto, que não há comprovação científica da eficácia

da droga contra o SarsCoV-2, e que a autorização para que seja receitada não significa recomendação.

 OBSESSÃO PRESIDENCIAL

Defensor de primeira hora da cloroquina, Bolsonaro quer que o ministério passe a tratar a utilização em casos leves como regra. Ele chegou a anunciar que o protocolo para isso sairia ontem. Além da cloroquina, o distanciamento social é outro ponto no qual o ministro não dava respaldo ao discurso do presidente. A diferença de visão ficou evidente quando, na última segunda-feira, Bolsonaro incluiu academias e salões de belezas entre os serviços essenciais sem que o ministro fosse consultado. Surpreendido com a informação durante entrevista, Teich chegou a dizer que a regra poderia ser revista. O ministro produziu uma nova matriz para o distanciamento social, mas desistiu de divulgar detalhamentos após a resistência de estados e municípios. A ideia era ampliar critérios para a avaliação da necessidade de medidas restritivas. Secretários, porém, ponderaram que não era possível discutir o tema enquanto a curva de contaminação está crescente no Brasil. Em seu pronunciamento de despedida, de cinco minutos e meio, Teich não explicou os motivos da saída. — A vida é feita de escolhas e hoje eu escolhi sair [...]. Não é uma coisa simples estar à frente de um ministério como esse em um período tão difícil. Agradeço ao meu time que sempre esteve ao meu lado. É um trabalho de um grande time —afirmou.

Teich disse que aceitou o cargo, há menos de um mês, por achar que "poderia ajudar o Brasil e ajudar as pessoas" e disse deixar um plano de trabalho pronto para secretários, governadores e prefeitos definirem os próximos passos no combate à doença.

"Cloroquina hoje ainda é uma incerteza. Houve estudos iniciais que sugeriram benefícios, mas existem estudos hoje que falam o contrário"

TEICH, 23 DE ABRIL, SOBRE O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA TER LIBERADO MÉDICOS A PRESCREVEREM A DROGA

"Estamos diante da maior calamidade na saúde pública, com o maior número de mortos de nossa história recente. A instabilidade e a falta de ações coordenadas e claras são inimigas da saúde e da vida"

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Alberto Beltrame, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass)

"Há coisas que são básicas, não tem como ter liberação de isolamento quando há uma curva em franca ascendência"

TEICH, 30 DE ABRIL, COMENTA PRESSÃO PRESIDENCIAL PARA RELAXAR O ISOLAMENTO SOCIAL NOS ESTADOS E MUNICÍPIOS

"Não adianta trocar ministro se as políticas adotadas visarem a interesses menores e mal informados e não à preocupação genuína com a vida e a sobrevivência dos brasileiros"

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Ildeu de Castro Moreira, presidente da Soc. Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)

"Saiu hoje?"

TEICH, 11 DE MAIO, AO SER QUESTIONADO POR REPÓRTERES SOBRE O DECRETO PRESIDENCIAL QUE INCLUIU ACADEMIAS, SALÕES DE BELEZA E BARBEARIAS NO ROL DE SERVIÇOS ESSENCIAIS

"É uma vergonha termos um presidente que vai na contramão de todos os outros países. O Brasil vai se tornar o epicentro da pandemia se continuarmos seguindo as recomendações dele" _

Gulnar Azevedo, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)

"Se o Conselho Federal de Medicina decidiu que pode usar cloroquina desde os primeiros sintomas, por que o governo federal, via ministro da Saúde, vai dizer que é só em caso grave?"

BOLSONARO, 14 DE MAIO, ANTES DA REUNIÃO COM EMPRESÁRIOS DE SÃO PAULO

"Repudiamos, mais uma vez, o caos na gestão do Ministério da Saúde. Não bastasse a demissão de Mandetta há menos de um mês, agora assistimos perplexos à saída de Nelson Teich"

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Conselho Nacional de Saúde, colegiado ligado ao ministério que fiscaliza as políticas públicas

"Votaram em mim para eu decidir, e essa questão da cloroquina passa por mim. Está tudo bem com o ministro da Saúde, sem problema nenhum, acredito no trabalho dele. Mas, essa questão da cloroquina, vamos resolver." BOLSONARO, 14 DE MAIO, SOBRE

A CLOROQUINA EM REUNIÃO COM EMPRESÁRIOS DE SÃO PAULO - FIESP

"É sempre preocupante, porque é um momento de batalha, mas certamente ele tem uma equipe que vai continuar a trabalhar. É um problema, sem dúvida alguma, mas nós vamos vencer"

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Marcos Pontes, ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, ao G1

"Até o momento, o governo federal não apresentou medidas adequadas para o enfrentamento dessa crise. E a postura do presidente Jair Bolsonaro dificulta ainda mais"

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Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil