O Estado de São Paulo, n.46252, 05/06/2020. Política, p.A4

 

Governo passa R$ 84 mi do Bolsa Família para anúncios

Camila Turtelli

Felipe Frazão

05/06/2020

 

 

Executivo. Planalto transfere recursos do programa social para publicidade institucional em meio a pandemia e é alvo de críticas de parlamentares; Nordeste é região mais afetada

Sem máscara. Bolsonaro fala a apoiadores em frente ao Palácio do Alvorada sem proteção, descumprindo decreto do DF

No momento em que o presidente Jair Bolsonaro é alvo de protestos e sofre ameaça de impeachment, o governo retirou R$ 83,9 milhões que seriam usados no programa Bolsa Família para investir em publicidade de suas ações. A medida atingiu os recursos previstos para a região Nordeste do País e causou críticas no Congresso por ocorrer durante a pandemia do coronavírus, quando muitas famílias estão sem fonte de renda. O dinheiro será destinado à Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom) e vai bancar a propaganda institucional.

A portaria que prevê a transferência da verba foi publicada ontem no Diário Oficial da União em ato assinado pelo secretário executivo do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues. Apesar do corte, o Ministério da Cidadania sustenta que o pagamento do benefício está garantido por recursos do auxílio emergencial. Há, no entanto, uma fila de espera de 433 mil pedidos para acesso ao Bolsa Família.

O valor total destinado ao Bolsa Família, no ano inteiro, é de R$ 32,5 bilhões. Técnicos do Congresso ouvidos pelo Estadão disseram que, como não há recurso extra, a transferência de verba para a publicidade de atos do governo não precisa passar pelo crivo dos parlamentares.

Para efeito de comparação, os R$ 83,9 milhões destinados à Secom dariam para comprar 1.263 respiradores hospitalares – ao custo de R$ 66,4 mil cada – ou 856.164 mil testes tipo RTPCR para detectar a infecção pelo coronavírus em pacientes, ao preço unitário foi de R$ 98.

A Secom já gastou R$ 17,8 milhões com propaganda durante a pandemia do coronavírus, de abril até hoje. Os recursos são utilizados para divulgar peças publicitárias com o mote de que é preciso “proteger vidas e empregos”. Depois do fracasso da campanha “O Brasil não pode parar”, vetada por decisão da Justiça, Bolsonaro e a Secom – comandada por Fábio Wajngarten – adotaram a frase “Ninguém fica para trás”.

Críticas. Parlamentares criticaram a transferência dos recursos, principalmente por envolver dinheiro que seria destinado à população de baixa renda. “É importante lembrar que isso acontece no momento de aumento da fila do Bolsa Família, ao mesmo tempo em que pairam sobre a Secom denúncias de mau uso de suas verbas para a propagação de fake news e mensagens e ódio”, disse a deputada Tabata Amaral (PDT-SP).

O líder do Novo, deputado Paulo Gamine (RJ), afirmou que a verba da Secom foi reduzida de R$ 273 milhões para R$ 73 milhões na votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2020. “Nós reduzimos esse gasto e agora o governo quer recompor esse valor. A que custo? Para quê?”, perguntou. Já Perpétua Almeida (PC do B- AC) classificou a ação como criminosa: “Tirar R$ 83 milhões da boca de famílias pobres para fake news é crime”. O deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) adotou tom semelhante. “A medida diz muito sobre as prioridades de Bolsonaro. Tirar comida da mesa de quem mais precisa para aumentar a própria popularidade é o cúmulo da canalhice”, protestou ele.

Em março, o Estadão revelou que a região Nordeste só recebeu 3% dos novos benefícios concedidos no mês de janeiro, enquanto o Sudeste e o Sul foram priorizados nas novas concessões, reunindo 75% dos pagamentos no primeiro mês deste ano. O Tribunal de Contas da União (TCU) avalia se houve irregularidade.

Questionado sobre a fila de espera no Bolsa Família, o secretário de Desenvolvimento Social do Ministério da Cidadania, Sérgio Queiroz, disse não haver motivo para preocupação. “Após a entrada em vigor do auxílio emergencial, todas as pessoas do cadastro único que se adequaram às exigências da lei do auxilio foram contempladas”, afirmou. Pela regra vigente, no entanto, o benefício será pago por apenas três meses.

Na prática, a campanha da Secom é diferente da produzida pelo Ministério da Saúde para fins de utilidade pública, com o objetivo de passar orientações sobre o novo coronavírus. O ministério já gastou R$ 61 milhões e deve ampliar a despesa com produção de mais conteúdo.

O dinheiro para bancar a publicidade institucional do governo Bolsonaro tem saído do orçamento de “Enfrentamento da Emergência de Saúde Nacional” dos ministérios da Saúde e da Cidadania, os mais envolvidos em ações diretas para atendimento à população. A Secom, por sua vez, centralizou a produção das peças publicitárias. A campanha é feita pela agência Calia Y2, sem que tenha havido uma seleção interna das propostas de outras contratadas pelo governo, como a NBS e a Artplan.

Um relatório produzido pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Fake News do Congresso apontou, na terça-feira, que o governo veiculou 2 milhões de anúncios em canais com conteúdos considerados “inadequados”. A lista inclui páginas que disseminam fake news, propagam jogos de azar ilegais e até sites pornográficos.

A Secom argumentou que a escolha de onde os anúncios seriam veiculados coube ao Google, mas a empresa rebateu e afirmou ser possível bloquear veiculação de propaganda institucional nesse tipo de site.

_______________________________________________________________________________________________________________________

Ministério diz que pagamento está garantido

05/06/2020

 

 

O Ministério da Cidadania informou, em nota, que o pagamento do benefício às famílias inscritas no Bolsa Família está garantido, mas não esclareceu o motivo da transferências dos recursos. A justificativa da pasta é de que a maior parte dos inscritos no programa recebeu, em abril, o auxílio emergencial de R$ 600 do governo pago durante a pandemia do novo coronavírus. Como não podem acumular benefícios, o repasse do Bolsa Família para estas pessoas foi suspenso, o que, então, teria gerado a “sobra” de recursos. Ainda há, no entanto, fila de 430 mil famílias esperando para entrar no programa.