O globo, n. 31695, 17/05/2020. Economia, p. 25

 

Às compras sem interagir com ninguém ou sequer sair de casa

17/05/2020

 

 

Crise do coronavírus gera novos hábitos nas famílias e deve acelerar o crescimento do comércio eletrônico e da automação nas lojas físicas

 Cento e treze anos após inventar a tinta para cabelo, a L’Oréal aposta agora na maquiagem para Zoom. Em abril, a marca francesa fechou parceria com a rede social Snap para transformar seus cosméticos em filtros para videoconferências. O objetivo é que, mesmo trancadas em casa, as consumidoras continuem experimentando seus produtos, ainda que virtualmente. A nova investida da gigante de beleza na realidade aumentada mostra que distância não é uma condenação para o varejo. Após um batismo de sangue na pandemia, tecnologias de comércio eletrônico, realidade virtual, pagamentos por aproximação e até drones devem moldar as vendas num futuro de consumidores mais pobres, avessos a aglomerações e viciados em comodidade. —A evolução digital do varejo não retrocederá. A recessão de 2008 representou apenas uma redução de vendas. Já esta crise é um rompimento de modelo — resume José Galló, presidente do Conselho de Administração da rede de lojas Renner.

O castigo já chegou para quem desdenhou desse futuro, lembra Alfredo Pinto, chefe da consultoria Bain & Co. na América do Sul. A rede britânica Primark, amada por clientes e investidores por seus preços baixos e lucros altos, desprezou completamente as vendas on-line. Quando a pandemia fechou as lojas, o faturamento colapsou. Foi de 650 milhões de libras mensais a zero.

—O futuro será omnichannel,o consumidor escolherá onde comprar. A loja física terá que ser “a loja”, proporcionando a experiência emocional e lúdica que não existe no computador. As pessoas estarão viajando menos, então as compras terão que ser o novo lazer —acrescenta Galló. Estabelecimentos terão que ascender à categoria de lojas conceito para fazerem sentido, diz Ricardo Balkins, da consultoria Deloitte. Ao mesmo tempo, serão cada vez mais pontos de apoio logístico à última milha da entrega do e-commerce, acrescenta Alfredo Pinto, da Bain. Isso trará uma cruel seleção natural, com marcas consolidadas avançando às custas de pequenos lojistas em cidades periféricas. O risco é surgirem “desertos de lojas”, com implicações urbanas.

Traumatizados pelo vírus, os consumidores vão privilegiar o menor contato possível. As lojas sem caixa da Amazon são a referência. Estudo da Nielsen Brasil prevê um futuro cada vez mais “scan & go”, com as pessoas pegando seus produtos, escaneando e pagando sem interação pessoal. Na China, já se pode comprar os carros da Geely on-line receber as chaves via drone na varanda. Ao reconciliar os consumidores com o lar à força, o coronavírus também afetará decisões de consumo. O dinheiro mais curto tornará o consumidor extremamente sensível a preço, afirma Franz Bedacht, da Bain. Depois de assar tantos pães de fermentação natural, a classe média deve cozinhar mais em casa. Após se reconectar com a água sanitária, fará menos sentido pagar diaristas, e mais investir em produtos de limpeza e eletrodomésticos.

—Haverá valorização do espaço pessoal. Mesmo depois da doença, as pessoas terão receio de sair e menos dinheiro —diz Domenico Tremaroli, da Nielsen. A pandemia também converterá necessidade em comodidade nos meios de pagamentos, prevê Fernando Teles, presidente da Visa no Brasil. Pagamentos por aproximação e uso do cartão de crédito e débito no e-commerce, potencializados pelo medo de contaminação, devem virar um hábito. Em março, o uso de cartões Visa com pagamento por aproximação no Brasil já foi cinco vezes maior do que há um ano.